10 poemas de Carlos Machado


Entre ave e réptil

interessa-me
entre ave e réptil
a condição 
ambígua

confesso meu
fascínio por
essa corda estendida
entre uma e outra
palavra
e sua falsa noção
de equilíbrio

trago na raiz
do gesto o alvoroço
do circo

nervo reteso
lanço-me no ar
risco a 
superfície do inútil — e voo!

por vezes 
uma palavra mais ágil 
me subtrai
do precipício

mas quase sempre 
me esborracho 
no chão 
em meu voo solo
sem tambor nem
auxílio

reconfirmado
sísifo 
— amador de seu ofício —
alço-me outra vez
ao risco dos trapézios

 

A caça insubmissa


nada possuis do outro

nem corpo nem asa

nem mesmo o sopro

morno da palavra

 

teu é apenas o perfume

de carne e cedro

que aspiras na pele

da caça insubmissa

 

nada é teu: dorme

e inventa no sonho

outra forma de laço

caça sem caçador

 


Alma de relógio (2)

 

É na mudança que as coisas

acham repouso.

(Heráclito)

 

não dormes:

teu único

repouso

é descobrir-te

em cada momento

sempre

desigual a

ti mesmo

 


Baobá

 

Vontade de fazer

uma coisa grande

de futuro imenso:

plantar um pé

de jacarandá

um baobá

e deixá-lo aí

para beijar

a cumeeira

dos séculos,

zombar de tudo

que é breve

e que, como nós,

se consome

no atrito das

horas, na

vertigem

incontrolável

das coisas miúdas.

 

 

Heraclitiano

 

na segunda chicotada

você já é outro

 

— não importa o lado

do chicote

 

 

Pássaro de vidro (3)

 

o pássaro é cego

e cego é quem

se agita

em seu espaço

ambíguo

 

esse espaço

de incessante

tarde nua

 

onde o voo

risca um traço

branco

de vidro no vidro

 

  

Margarida

 

na margarida

do relógio

desfolho

uma a uma

as pétalas do dia

 

nesse jogo

de sal e saibro

toda pétala

a mais é

vida a menos

 

e toda flor

malmequer 

 

 

A mulher sem nome

 

Estátua de sal 

rosto chamuscado

pelo fogo de Sodoma.

O que desejavas

ao olhar para trás?

 

Tiveste saudade

de tua casa, nostalgia

das flores de teu

pomar ou, curiosa,

apenas quiseste saber?

 

Um gesto apenas

– e a implacável

execração dos séculos.

 

Nem os escribas do livro

nem os doutores da lei

– todos varões

e medrosos –

ousaram dizer teu nome.

 

 

Certo

 

as coisas não dão certo

nunca deram certo

não foram feitas para dar certo

 

nós é que temos a ambição

do alinhamento e da simetria

 

e até inventamos deuses perfeitos

construídos à imagem

e semelhança do que sonhamos

 

as coisas não dão certo

nós é que cerzimos o pano

obturamos o dente

remendamos a fronteira no mapa

 

e inauguramos

na estátua de chumbo

um simulacro de ave

 

queremos crer

que as coisas dão certo

as coisas agora estão dando certo

e — se deus quiser —

 

sempre darão

 

  

Ponto final

 

O mundo acaba? Talvez sim.

Porém não como supõem

poetas e profetas. Quem

treme de medo diante dos

círculos infernais de Dante;

quem teme as trombetas

do Apocalipse; quem geme

de pânico ao pensar nas geenas

e nos seres estrambóticos

de Hieronymus Bosch. Não,

a ciência é mais sutil e cruel.

Nenhum temor ou tremor

pressupõe o que pode vir

das sinistras conjecturas

dos cosmólogos. Nem água

nem fogo nem horror dantesco.

Colapso universal e absurdo.

O Big Bang ao avesso.

Todas as dimensões contraídas

num ponto único. Ponto

monstruosamente final.

 


Ilustrações: Alina Citas

 

Carlos Machado (Bahia-Brasil, 1951) é poeta e jornalista. Cursou engenharia mecânica na UFBA e, em São Paulo, fez jornalismo da Faculdade Cásper Líbero. Trabalhou em diversos órgãos de imprensa, como os jornais Movimento e Leia Livros e as revistas Ciência Ilustrada, Quatro Rodas, Exame e Info Exame. Edita o site Alguma Poesia (www.algumapoesia.com.br), que completou 18 anos em 2021. Edita também o boletim quinzenal Poesia.net no Facebook. Autor dos livros A mulher de Ló (2018), Tesoura cega (2015) e Pássaro de vidro (2006). Publicou também o livro de poemas para crianças chamado Cada bicho com seu capricho (2015). 

 

 

Respostas de 8

  1. Uma coleção de poemas que miram a discussão dos temas mais abrangentes ao ser humano. Silenciados, temporariamente, pela luta pela sobrevivência e pelo medo da peste desconhecida. Mesclado ao pano de fundo mitológico, emergem as indagações tão profundas e antigas como a humanidade. Parabéns!

  2. O Ricardo Mainieri disse muito do que também sinto diante desses poemas do meu amigo Machado. Sim, questões "tão profundas e antigas como a humanidade". O homem é o mito que sonha diante do "ponto monstruosamente final". Parabéns, Machado, pelos poemas e pelas primaveras vividas.

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