COSA
Foi necessário regressar.
Regressar uma,
outra vez.
Desembarcar na manhã
úmida da infância.
Ter-me com os olhos
marejados de memória:
e só aí compreender
de súbito a vida,
cuja plenitude
verte-se: espalha-se
aos sopros –
dente-de-leão.
POEMA INÚTIL
escrevo para afirmar
as coisas inúteis
epopeia pela palavra exata
de suspender
na fruição do
poema
onde se diz nada
onde se diz tudo
onde se dispara
CATARSE
Através da palavra tenho
forjado encontros: estreita
ponte: mistério de sol
pr’além do poente.
Quereria rumar essas
montanhas, preencher
o canto: beleza:
ave flamejante.
Reconhecer Eros,
divino, sem a
mácula dos
dias.
GRAÇA
1.
tive inúmeras rejeiçõezinhas
algumas de tão bobinhas
até bonitinhas
nenhuma namoradinha
apenas soube vossas
graças: sempre a
rirem de mim
2.
agradeci pouco
a Deus
por toda essa
solidão
com qual fui
agraciado
obrigado
DEUS JOGA DADOS
mesmo se Ana C. me conhecesse
não seria eu alguém para quem
escreveria
pois ninguém escreve poemas
para os feios
pode-se até escrever poemas feios
caso falte fluência em gatografia
forjo sintaxe: Hefesto sob o ponto
posposto:
mesmo a esmo
(o praxe)
Ana C. fugiria do enleio
pois ninguém merece
o desgosto
de enxergar os feios
LITURGIA
Forjar – ala Hefesto – palavra-crua.
Sentimentalismo, mesmo honesto,
ao fogo, tão somente,
não encerra o verso.
Deixá-la ir com suas asas de Ícaro.
Quarar o verbo a exatidão da cera
da vela e penas de pássaros.
Como quem almeja o fulgor
inebriante do grande Sol da vida
mesmo sabedor dos riscos
de encará-lo à face.
O FRUTO DE PÊNIA
1.
nasço: olhos transparentes
dois pequenos lagos
a refletir Eros
divino
tacanho a transbordar
em mim
a fome
2.
somente os olhos
refletem Eros
divino
3.
a luz à volta
personifica
Pênia
eis a sombra
aos olhos
Eros humano
4.
a fome: os olhos
queixam-se
de eras
5.
agora por riachos turvos
a fome faz enxergar
miragem: Narciso
6.
sonho-me então
por outros lagos
assim
transbordar
em mim
o luar
ESPELHO
não sobrar nem faltar
ser sob medida
exata
como agora acontece
a vida
mera conveniência
imediata
um corte esculpido o
verso
quando sobra o
verbo
um corte estupendo
no dedo polegar
Procusto se
enxerga se
sabe
no dedo polegar
nenhuma
entrelinha
cabe
NA MANHÃ DE SOPHIA
Na manhã onde nascia Sophia
os sábios buscavam entender
melhor sobre o correr dos dias.
Dividiam ideias para render,
mudavam as respostas obtidas
e assim faziam-se aprender
a pensar o pensar sobre a vida,
na manhã onde nascia Sophia
já pronta para ser inserida
muito além de qualquer teoria.
Fundar o pensar o pensar algum
tornou-se importante guia
ao nosso bem maior comum
pois fez-se na manhã de Sophia
a luz da lição: somos todos um.
COSMOGONIA
Escondo-me da face
bruta não-dita na
cicatriz do verso
à qual a mágoa
se expele.
Existo equilibrando
todo caos na
própria pele.
Ilustrações: Max Mitenkov
Lucas Luiz – Guararema / SP . Nascido em Guararema no ano de 1991. Iniciou publicando crônicas no “Jornal D’Guararema” e depois poemas no site de variedades “Guararema Tem”. Foi redator do programa “Guararema Online” da Produz Áudio&Vídeo. Recentemente colaborou com as Revistas Literárias: Avessa, Inversos, LiteraLivre, Ser Esta, Bibliofilia Cotidiana, FrentesVersos, Contempo, Aboio, A Bacana, Philos, Ruído Manifesto, Subversa e Mallarmargens.
Respostas de 2
Adoro os poemas do Lucas. Um achado.
Boa escolha, Solange!