IDENTIFICAÇÃO
Identifico-me com a noite
e com o que ela traz
de específico a si mesma,
e assim fazendo, aceito
o convívio de seres opacos
e da nova ordem e estado de coisas
que o escuro inaugura.
Identifico-me com o avesso
sou aliás o próprio avesso de mim,
e assim sendo, conheço
as esquinas sombrias
nas quais se disfarça
a inexorável nulidade.
Volto de manhã para casa,
e num balanço isento da noite
nenhum acréscimo se me acrescentou
de forma permanente.
Voltei eu mesmo sozinho e íntegro,
apesar das concessões necessárias
ao convívio comum entre os homens.
Nada ganhei e também nada de mim
se perdeu, exceto esta vida
que amanhece mais velha.
O Acaso das Manhãs
DELÍRIO
A porta fechada
escondia a fúria
do outro que em mim
se debatia.
Ouço passos na escada
e me contraio todo
no silêncio nervoso,
para que não percebam
a silhueta de minha desgraça.
O vento nas cortinas
me transmite
(na sua dança impetuosa),
a agonia de dentes e o sangue
no grito das carnes das vítimas.
Os jornais já trouxeram
em suas manchetes
o rastro de minha maldição
estampada na contagem de mortos.
Agora os passos se detiveram
no alpendre da casa,
onde a lua e os seus fantasmas
esculpem meu sortilégio noturno.
Dominado pela febre compulsiva
me arrasto pelo assoalho até a sala,
onde arfante e desfigurado
aguardo o girar da chave.
Areia (À Fragmentação da Pedra)
VILAREJO DE MEL E LUA
Beraldes e o seu espantalho
espantando do quarto
as minhas lembranças
ruins do passado.
Caldas e o seu frio gelado
durante o turismo rural
nos finais de semana
de amor interminável.
Poços e a sua rodoviária
de domingo à noite, já
voltando do vilarejo de
lua de mel e saudades.
O Jardim Simultâneo
DAS ESCOLHAS QUE FAZEMOS
Considero minhas possibilidades
depois de fechado o portão principal.
Por duas vezes arrependi e tentei forçar
o portão que eu havia fechado,
mas ele estava trancado por dentro
como prevenção a recaídas.
Tenho nas narinas um cheiro de carpete velho
e durmo na sala como um cão domesticado.
A Sentinela em Fuga e Outras Ausências
ÓDIO
Ódio de tudo:
de ti, de
mim, da
sombra no
asfalto, das
conversas
dos vizinhos
comendo
churrasco e
arrotando
bobagens,
dos barulhos
no telhado,
da televisão
ligada em
programas
de auditório,
dos ruídos que
vem das ruas,
do ambiente
de trabalho, das
necessidades
fisiológicas dos
governantes, da
inteligência
pedindo
esmolas
aos agiotas,
dos restaurantes
abarrotados
(que raiva das
pessoas perfi-
ladas mastigando
qualquer carne),
ódio de tudo
e de todos,
neste momento
em que faço
uma análise
antes de deitar
o meu cansaço.
Uma Escada que Deságua no Silêncio
REIVINDICAÇÕES
Eu sei que eu mereço
(embora talvez eu não venha a
ter) o meu nome num nome de rua.
Eu sei que eu mereço
uma estátua de bronze
na praça de Ervália.
Eu sei que eu mereço
denominar a Casa da
Cultura como o poeta que sou.
Eu sei que eu mereço
casar com uma mulher
negra, que é o meu sonho
de consumo.
Eu sei que eu mereço
ter um aumento de salário
para poder sobreviver.
Eu sei que eu mereço
ganhar um prêmio literário
para pagar as dívidas.
Eu sei que eu mereço
pescar um peixe grande
nas águas do tanque.
Eu sei que eu mereço
nadar como quem voa
pelos céus de outro país.
Eu sei que eu mereço
cavalgar uma égua
enfiando o dedo no seu cu,
para ela andar depressa.
Eu sei que eu mereço
empinar uma pipa gigante
que nunca será alcançada.
Eu sei que eu mereço
formar uma banda de rock
e fazer muito sucesso.
Eu sei que eu mereço
ser aclamado e lido como
nunca antes na história
deste país.
Eu sei que eu mereço
receber uma homenagem
de adeus e logo ser esquecido.
Eu sei que eu mereço
uma catacumba digna
para descansar os meus ossos.
Eu sei que eu mereço
tudo isso, mas desconfio
que não terei nada.
O Jardim Simultâneo
RESSENTIMENTO
Ressentir
é sentir de novo
a recusa renovada
desde sempre.
Amanhã
eu terei de
amanhecer
e estar lá.
De pé entre
as pedras
esculpidas
nos gestos.
Pedaços
de sonhos
decepados
pelo cansaço.
O sol se põe
no colorido
das águas
tranquilas.
Um golfinho
sobrevoa o meu
desalento de não
saber nadar.
E de não saber nada.
O Jardim Simultâneo
ADIAMENTO
Trago comigo meus poemas
que ainda não foram escritos,
simplesmente porque não se fizeram
e nem se recolheram à sua impossibilidade.
E vou deixando-os portanto para o dia
seguinte, para a manhã seguinte, para
a vida seguinte que não haverá.
Areia (À Fragmentação da Pedra)
VIGÍLIA
A realidade dos meus sonhos
ultrapassa a minha realidade
de indivíduo e mostra que
quanto mais próximo estou
do alvo, mais ele se distancia.
A fantasia de minha vida
ultrapassa a minha capacidade
de vivê-la e demonstra que
quanto mais longe estou
do objeto de meu sonho,
mais ele se torna nítido.
Por isso tenho a concepção
de que o mundo é apenas
uma maneira de se inserir
no escuro e acender velas
para distinguir o próprio rosto.
Areia (À Fragmentação da Pedra)
EX-100
Perco-me no trabalho de ser acessível
a alheias vidas que não me dizem respeito
ao se aproximarem de mim, cuja solidão
se tornou um fardo inevitável pela própria
impossibilidade de desdobrar-se em convívio.
Sinto que estou exposto inteiro
para uma vitrine frequentada por cegos.
Vejo que me revelo em sonhos e sombras
para a interpretação de uma platéia
aficionada em pormenores sem importância.
E percebo que a soma de tudo
é essa tranquilidade adiada de meu sono
para depois da morte, que já apascento
em contagem regressiva e neutra.
Areia (À Fragmentação da Pedra)
Ilustrações: Hengki Koentjoro
Milton Rezende nasceu em Ervália (MG), em 23 de setembro de 1962. Viveu parte da sua vida em Juiz de Fora (MG), onde foi estudante de Letras na UFJF, depois morou e trabalhou em Varginha (MG). Funcionário público aposentado, atualmente reside em Campinas (SP). Escreve em prosa e poesia e sua obra consiste de treze livros publicados: O Acaso das Manhãs (Edicon, 1986), Areia (À Fragmentação da Pedra) (Scortecci, 1989), De São Sebastião dos Aflitos a Ervália – Uma Introdução (Templo, 2006), Uma Escada que Deságua no Silêncio (Multifoco, 2009), A Sentinela em Fuga e Outras Ausências (Multifoco, 2011), Inventário de Sombras (Multifoco, 2012), Textos e Ensaios (Multifoco, 2012), O Jardim Simultâneo (Penalux, 2013), A Magia e a Arte dos Cemitérios (Penalux, 2014), Um Andarilho Dentro de Casa (Penalux, 2017), Mais uma Xícara de Café (Penalux, 2017), A Casa Improvisada (Penalux, 2019) e Antologia Poética (Algarobra, 2020, no prelo).
Publicações em diversos blogs, revistas, jornais e sites de literatura, tais como: Germina, Alagunas, Subversa, Jornal de Poesia, O Bule, Poesia para Todos, Palpitar, Gotas de poesia e Outras essências, Portal Literal, Recanto das Letras, Gaveta do Ivo, Contos Cabulosos e Cronópios.
Fortuna crítica: “Tempo de Poesia: Intertextualidade, heteronímia e inventário poético em Milton Rezende”, de Maria José Rezende Campos (Penalux, 2015).
Respostas de 3
Parabéns Milton! Poesias maravilhosas!
obrigado Maria José Rezende Campos, por ser a precursora da minha fortuna crítica com: “Tempo de poesia: intertextualidade, heteroníma e inventário poético em Milton Rezende
obrigado Maria José.