11 poemas de Alberto Pereira


VIII (Como num naufrágio interior morremos)
 
O corpo,
canora ave
na puberdade das falésias.
 
Ainda sem o infinito
adornado para o junco,
a pele,
condomínio de fábulas.
 
Mais tarde,
o ciclo menstrual da erosão.
 
O povo,
negra pintura de Goya
no entardecer da idade.
 
Prometeram-lhes que os olhos
seriam em todas as horas
pinturas de Matisse
e o futuro usaria brinco de pérola
como as raparigas de Vermeer.
 
Mas o que temos
é musgo no desfiladeiro das veias.
 
Ficaram para trás as mães
remendando fantasmas na trincheira.
Estas já não dizem,
Agosto é o epicentro de uma tela de Pollock
e a infância foi criada por um vulcão
nos pincéis de Miró.
 
Fossem os precipícios
um verso de Quintana
e todos gostaríamos de venerar
a arte do alagamento.
 
Quem faz um poema salva um afogado.
 
Na inundação,
o povo escreve seda mais pura.
 
  
II (Poemas com Alzheimer)
 
Os poemas não gostavam do meu bairro.
A miséria era um arranha-céus,
por isso, quando me perguntavam onde morava,
dizia,
Nova Iorque.
 
Havia homens com vinho no lugar do sangue.
As mulheres cheiravam a um velório eterno,
as crianças diziam coisas
que os carteiros desconheciam.
 
“Os políticos são cartas sem código postal”.
 
Os economistas, esses passavam o tempo
a trocar as moedas lá de casa por vazio.
 
Os meus pais detestavam correspondência,
trazia convites para o tribunal.
Depois vinham polícias e algemavam a casa.
 
Nós saíamos.
 
Já não havia telhado,
as paredes ficavam sem gritos
e os santos podiam espreitar-nos o património.
 
Perguntava,
como se fecham as portas ao ácido?
 
O meu pai parecia um hospital,
tinha aflições.
Havia mofo nos seus olhos.
Eu com os dedos
desenhava uma ideia larga,
segurava-lhes o pó.
 
Não entendia,
se as estações são quatro
porque era sempre Outono na minha mãe.
Nela tudo caía.
Os dias tinham sido,
muros que se confundiram com pássaros,
nuvens interpretadas como asas,
pólen com a colmeia deprimida.
Quando as lágrimas transbordavam,
a sua face ficava um rio
e eu,
deixava-lhe beijos como barcos.
 
O tempo meteu-me no naufrágio.
Não controlei as rédeas ao vento
e bem dizia Sylvia Plath
“a voz de Deus está cheia de correntes de ar”.
 
Agora sei,
o Outono é bilhete de identidade,
fala legalmente de muitos corpos.
 
  
I (Como num naufrágio interior morremos)
 
Venho falar-te do fôlego dos cínicos,
da longa máscara que finge ter mastro,
desses requintados oradores de varizes gourmet.
Dos que descobrem na última curva dos gestos
que foram cítaras com gume.
 
Sou anzol que sai do útero do poema
para elevar o osso da fala até aos lírios.
Velho merceeiro de colisões.
Atalho entre a pólvora e um revólver.
 
Sou sede,
hospício a galope na dinamite.
Uma lâmpada muito nítida
que se acende em Victor Hugo.
 
Encerro no âmago
o oceano como Homero, o Cáucaso como Ésquilo,
Roma como Juvenal, o inferno como Dante,
o paraíso como Milton, o homem como Shakespeare.
 
Revolução,
atlas de um povo consumido
que explode na iniciática
viagem à carótida da pátria.
 
São sempre os loucos que calçam sandálias ao hino.





IV (Como num naufrágio interior morremos)
 
Caminho como uma fogueira no tempo.
 
Estão longe os dias
que pronunciavam o Louvre.
Tudo respira entre dois hemisférios:
um repleto de harpas e cotovias,
o outro,
hirto de mandíbulas e agónicas ficções.
 
O corpo,
antigo prado vigiado pela neve.
 
Cultivámos o aroma da máscara
e a sensualidade está agora
ligada ao ventilador.
 
A minha mãe
que orava a Cesariny,
repetia a
Pena Capital.
 
Dorme meu filho
o amor
será
uma arma esquecida
um pano qualquer como um lenço
sobre o gelo das ruas
Abolimos a leveza
de encostar os lábios
e a nebulosa taquicardia
não deixa que a vertigem recite:
o teu corpo é o Guggenheim.
 
De súbito,
Agosto inala tumulto.
 
Não entendemos
porque a Aurora Boreal
não continua a girar
à volta do nosso ego.
 
Como traduzir o Outono
onde a queda é definitiva?
 
O homem será sempre a partitura de um pântano.
 
 
VI (Poemas com Alzheimer)
 
Vai um tumor a passear um homem.
Leva a vida num balão
e uma mangueira que fala com o braço.
Nesse lugar, o braço tem nuvens.
Junto a uma das nuvens,
há um túnel que entra no rio.
À porta da pele o túnel tem asas.
 
O rio é a casa onde vive o sangue.
A casa tem rugas, paredes cansadas.
 
O homem é a cidade.
Caminha-lhe pelas pernas, o corredor.
Dos dois lados da ruína,
há portas que deixam os gritos vir ao recreio.
Estes correm.
 
Passam homens de branco
com colares ao pescoço.
Reis.
Mudos.
Reis mudos.
Numa das extremidades o colar tem um círculo.
Círculo que investiga
a brisa que vem do rio.
A brisa nasce num tambor que não tem férias.
Este trabalha no peito da cidade.
O tumor não larga o homem,
não larga o corredor.
Pela sua face
os pulmões estão com fome.
Sem oxigénio o rio enlouquece,
a brisa cessa,
a cidade coagula.
 
O tumor que passeia o homem
está agora cansado.
Abandona o corredor,
recolhe-se no leito.
As janelas olham o mundo.
De fora chega uma beleza que vem de longe.
O homem observa pelos olhos da janela.
 
O jardim aproxima-se,
entra no quarto.
As árvores puxam a cadeira,
sentam-se em redor da cama.
A cidade levanta a cabeça,
os sonhos escancarados ao pólen
navegam na relva.
 
O céu nunca teve tanta infância.
Mas de nada vale,
já ninguém vem atestar o coração de pássaros.
O tumor que tem um homem,
sabe,
restam do arco-íris
as cores dos comprimidos na mesa-de-cabeceira.
 
O brilho do jardim parece ter bebido.
Pula para o balão de soro,
escorrega pela mangueira,
mexe as asas,
atravessa o túnel de aço,
entra no rio,
beija a imaginação do sangue
e chega por fim
ao tambor que não tem férias.
 
Palpita a vindima do nevoeiro.
 
No hospital,
a simpatia do sol sempre foi esta,
matar a venda que cegou a vida.
 
 
A MÚSICA SACRA DOS LOUCOS (Antologia Luso-galaica)
 
Tenho uma idade que já não encomenda cotovias.
Migraram dos lábios os poemas inflamáveis.
Arder era uma música de hormonas descalças,
mas dançou em nós uma civilização de vermes.
Caminho. Os pés, duas candeias que acendem a locomoção.
A paisagem sem limalhas na garganta repete:
vê na antologia dos outros,
o itinerário do pássaro que em ti se vai alagar.
As cigarras imersas no termómetro das searas
convidam a face a visitar nas rugas as estátuas de Agosto.
Passam corvos, um luto que voa. A brisa mergulha numa árvore.
Os ramos lançam a sua roupa no solo.
A pastagem, enciclopédia verde lida pelo gado.
O céu é uma fenda.
Trovejei sempre nos subúrbios de Deus.
Vi fugir dos templos animais horrendos
e crianças vasculhadas como uma gruta.
Gosto apenas da música sacra que brota dos loucos
e aprendi a domesticar a insónia com Chopin.
A auto-estima não é um bosque.
O pensamento gosta de beber ciclones
em egos que se maquilham com duzentas léguas de mitos.
 
Os homens estalam sempre na cerâmica da mesma pergunta:
Em que idade atraca o corpo na cave da Primavera?
 
 
AS BÚSSOLAS DE UNAMUNO (Antologia Luso-galaica)
 
Aqui o planalto é um caçador.
Cada minuto uma autópsia aos poços e alçapões.
Sabemos agora: há muito que o corpo está desempregado da infância.
Nesse tempo, o ritmo dos animais era um salmo.
A neblina massajava as árvores.
Às primeiras sístoles dos pássaros,
os ramos iluminavam de orvalho a audição da pastagem.
As cigarras liam a sina ao estio.
E entrávamos sem fita métrica nos hospícios
para trazer mil graus centígrados de Chagall no peito.
As raposas não eram hóspedes dos lábios,
nem a garganta uma submissão do capitalismo.
Os dias financiaram a velocidade
e fundou-se uma religião de nuvens.
A nossa laboriosa raça humana
não passa de uma fatídica procissão de fantasmas,
que vão do nada ao nada.
Não respirámos as bússolas prescritas por Unamuno
e foram os discípulos de Hipócrates
que nos navegaram em rotas
onde o pensamento subiria pinturas de Dalí.
O ego é um meteorologista convicto.
Assim vai a Primavera interior dos homens na cidade:
florimos serotonina.
 

Mulheres algemadas (Amanhecem nas rugas precipícios)
 
Ao princípio eram ilhas, silenciosas,
espancadas pelos afazeres quotidianos,
submersas nesse continente masculino bronzeado de ordens.
Depois, devagar,
à medida que a vegetação dos seus corpos foi secando,
revoltaram-se com a ausência de luz.
Com delicadeza ergueram suavemente a voz.
O mundo musculado dos que davam ordens inquietou-se.
Tentaram convencê-las que a sua tarefa era cuidar dos filhos.
Espancaram-nas.
Amordaçaram a clorofila que lhes dançava nas veias.
Chamaram-lhes loucas.
Arranjaram até atestados para comprovar tal insanidade.
Vedaram às suas águas a literacia, a educação, a cultura.
Dos séculos herdaram a insularidade obediente da tradição,
a gestação descontrolada,
o cárcere doméstico de quatro paredes,
rabiscando sem cessar a veloz extinção do pó.
Enganaram a rotina com metáforas que bebiam
nos brinquedos espalhados pelos filhos.
Quando sonharam ter árvores
no pedaço de terra dos seus corpos,
deceparam-lhes os poemas dos ramos,
meteram-lhes grades nas mãos,
porque o trabalho traz independência,
aniquila a submissão.
 
Tiveram como legado
a biografia desflorestada dos desejos,
a repressão da sensualidade,
a ancoragem no medo.
 
A tempestade era o único beijo que conheciam
porque os homens
lhe canonizaram o Inverno na alma.
Mas uma ilha sensível sabe esperar,
avança lentamente por entre os espartilhos da liberdade.
Um dia cansadas juntaram-se,
floriu um arquipélago.
De arco-íris em punho,
assoaram a delicadeza ao sangue
e rumaram ao proibido.
Com o fôlego exausto de cativeiro,
incendiaram a voz,
porque o tempo sempre foram homens embarcados no céu. Romperam o exílio do
próprio brilho,
afogaram o preconceito
e de têmpera a têmpera, açaimaram as nuvens,
porque não queriam mais ouvir a neve ladrar.
 
Hoje, gritam ao abismo imposto,
arregalam os olhos à sombra
e a claridade que sempre tiveram nas cabeças
começa a alumiar o mesmo diâmetro que o sexo oposto.
 
Mas não se iludam,
o velho continente ainda usa máscara.
 




II (Viagem à demência dos pássaros)
 
Tarde aprendi,
homem que não fala com o seu Inverno
cresce-lhe a erva nos olhos.
O meu pai sempre disse,
“a mulher é uma árvore de coração movediço,
quando a resina lhe chega aos lábios
somos uma imagem em chamas”.
 
O amor,
apartamento de duas assoalhadas.
Uma,
com vistas magníficas
que prometem perfumar lâminas.
A outra,
espaço onde o tempo repete às vísceras
o meticuloso acordo entre a tempestade e a morte.
 
Afinal,
a vida não cheira continuamente
a um piano que toca flores.
O céu metido em prateleiras
apaixona-se pela lei da gravidade.
E cair não é bom para ninguém.
Também os deuses
em contacto com o solo
imitam o cristal.
 
Os meses têm dentes.
 
E eis-nos,
a dar a última demão no vento
para citarmos de novo
um corpo que foi Agosto.
 
O amor é uma pistola
que faz férias no paraíso.
 
 
III (Viagem à demência dos pássaros)
 
Sabes, meu amor,
adoro os pássaros que voam
quando as árvores já não são suas.
A biografia do coração
raramente esquece a queda das folhas.
 
E o que é o voo para lá do Outono?
 
Não me digam para guardar
o vento na garganta
ou que as tempestades
são retratos de um hospício.
O teu corpo ensinou-me,
o Verão é um felino
e a hierarquia das garras
só o tempo a sabe.
É certo, as nódoas têm sinos,
mas no pináculo do perfume
ninguém observa versos rotos.
 
Ainda te quis quando a pólvora
tocava os últimos acordes nos ramos.
Não tinha aprendido,
aparar as unhas à neve
serve para pintar biombos nos olhos.
Se tivesse ouvido Dostoiévski ou Gógol
e bebido as sombras de São Petersburgo,
sabia,
o ouro das catedrais
assimila a mágoa da cidade.
 
Sabes, meu amor,
a eternidade procura sempre uma corda no céu.
 
 
II (Como num naufrágio interior morremos)
 
Ao sol da corrupção
e do branqueamento de capitais,
versos com artrite.
 
A cura para o reumatismo poético,
conceber outro país.
 
Leis coreografadas por Pina Bausch,
onde não dance a fraude
e a linguagem do povo
acenda aves numa côdea.
Em cada repartição de finanças,
empregados que façam a colecta
com o timbre de Léo Ferré.
A ultrajar a hierarquia,
o Imposto Municipal sobre Imóveis
redigido por Baudelaire.
 
Gente que grite,
aquela taxa consumiu haxixe e absinto
como a tempestuosa relação
entre Rimbaud e Verlaine.
A voz grossa de um traço de Miró
a dizer:
Estado,
Personagem atirando pedras a um pássaro.
 
A vanguarda não é colocar
meias-solas nas árvores de quem trabalha.
Porque continuamos a insistir
em apanhar comboios para o limbo?
 
A democracia não usa relógio.


Ilustrações: Kay Sage

Alberto Pereira, escritor português. Nasceu em Lisboa. Licenciado em Enfermagem. Pós-graduado na área Forense. Diplomado em Hipnose Clínica. Membro do P.E.N. Clube Português. Publicou os livros: O áspero hálito do amanhã (2008); Amanhecem nas rugas precipícios (2011); Poemas com Alzheimer (2013); O Deus que matava poemas (2015); Biografia das primeiras coisas (2016); Viagem à demência dos pássaros (2017); Bairro de Lata (2017) e Como num naufrágio interior morremos (2019). Participou em colectâneas de contos e poesia, das quais se destacam: Antología de Poesía Iberoamericana Actual (Espanha); Antologia da Moderna Poética Portuguesa; Textos de Amor (Museu Nacional da Imprensa)À Sombra do Silêncio / À L’Ombre du Silence (Suiça); Inefável; Cintilações da Sombra III; Bicicletas para Memórias & Invenções IV e VColleita de Poesía Galaico-Lusa 2019 (Galiza – Espanha); Revista Caliban, Literatura & Fechadura (Brasil); Palavra Comum (Galiza – Espanha); Nervo III, Cintilações I e II; Chicos – Cataletras 57 e 58 (Minas Gerais – Brasil); Punto en Línea – Universidad Nacional Autónoma de México; Antologia Escritores Língua Portuguesa 6 (Português – Inglês), Lógos – Biblioteca do Tempo Nº 6O Boletim da Pauta 6 (Braille) e Latitudes da Semelhança -Isabel Nolasco (engloba os últimos textos publicados por Luis Sepúlveda).
Alguns dos seus poemas foram traduzidos para espanhol, francês e inglês.
O livro Poemas com Alzheimer deu origem a diversos quadros concebidos pelos pintores espanhóis Martina Bugallo e Sergio Gonzalez Ribeiro. A sua obra foi igualmente recriada por Artistas Plásticos portugueses.
Bairro de Lata foi editado no Brasil na icónica colecção “Dulcineia Catadora”, onde participaram grandes nomes da poesia brasileira como Manoel de Barros e Haroldo de Campos.
A urdidura dos seus processos de escrita foi abordada em vários encontros literários, universidades, jornais, programas televisivos e radiofónicos.
Obteve os seguintes prémios literários: 1º Prémio do Concurso de Poesia; “Ora, vejamos” (2008); 1º Prémio no Concurso de Poesia da ACAT (2009); 3º lugar no Prémio Sepé Tiaraju de Poesia Ibero-Americana, entre 3027 obras inscritas de 26 países (2009); 1º Prémio do Concurso de Conto “Ora, vejamos” (2009); Menção Honrosa no Concurso Textos de Amor, Museu Nacional da Imprensa (2010); Finalista do 21º Concurso de Contos Paulo Leminski – Paraná, Brasil (2010); 1º Prémio do Concurso Literário Conto por Conto (2011); 1º Prémio no XIV Concurso de Poesia Agostinho Gomes (2013); 1º Prémio no Concurso Literário Manuel António Pina, Museu Nacional da Imprensa (2013) e Menção Honrosa (2014, 2015, 2017, 2018, 2020); Menção Honrosa no Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant´Anna (2018 e 2020). Finalista do Prémio Internacional de Poesia António Salvado (2021) com o livro Mulheres legendadas de Alzheimer |Inédito|.

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