
Lacinhos
I.
— Mãe, posso levar estas batatas fritas?
— Podes.
— E posso levar um pacote de Cheetos?
— Anda, traz.
— E uma garrafa de Coca-Cola?
— Okay, mas despacha-te. A ideia era fazermos umas compras rápidas… Estamos os dois a precisar de ir para casa.
— Olha estas bolachas com recheio de limão. São só mais estas. Pode ser?
— Tudo bem, querido. Mete no cesto. A mãe precisa de ir ao corredor aqui ao lado. Já não temos massa. Queres esparguete ou fusilli?
— Podemos levar lacinhos? Nunca compras lacinhos.
— Está bem. Hoje levamos lacinhos. Queres mais alguma coisa?
— Posso levar uma pizza para o jantar?
— Sim. É boa ideia. Vai lá escolher uma. É essa que queres? Tens a certeza? Tu nem gostas de pepperoni.
— Gosto sim.
— Vê lá, Miguel. Porque é que não levas aquela de cogumelos? Levas sempre essa.
— Estou farto de cogumelos. Quero pepperoni.
— Tu é que sabes. Depois podes sempre pôr para o lado se não gostares.
— Mas eu gosto de pepperoni!
— Okay. Anda, vamos pagar. Vamos para aquela caixa, não tem ninguém.
— Mãe, porque é que a avó Mena não ficou cá mais uns dias?
— A avó Mena está triste.
— Nós também estamos. Podia ter ficado cá connosco. Não precisava de ir para Mangualde logo a seguir.
— A avó Mena precisa de algum tempo… Ainda está tudo muito fresco. Olha, tira daí um saco dos recicláveis.
— Qual? Destes?
— Não, filho. Dos maiores. Esse é muito pequeno.
— Destes?
— Isso mesmo. Boa tarde.
— Boa tarde. Tem cartão de cliente?
— Sim, tenho. Deixe ver… Desculpe, afinal não tenho. Ficou na carteira do meu marido…
— Pode dizer o número do seu marido.
— Sim… É o 917… 5… 4… 5… 212.
— Marco Esteves de Almeida?
— Sim…
— Pode passar o cartão.
— …
— Muito obrigada e boa tarde!
— Obrigada…
— Foi mesmo estranho, mãe. Quando é que vais desactivar o número do pai?
— Não te preocupes com isso, Miguel. A mãe trata de tudo.
II.
Percorrem os corredores forrados a embalagens a passo rápido. Ela, uma mulher angulosa de cabelo crespo; ele, cheio dos jeitos trôpegos próprios de vítimas de salto de crescimento. O preto das roupas recorta-os da luz, do colorido: são mãe e filho, mas também não-mãe, não-filho. O cesto que arrastam parece não lhes pertencer.
Isto, claro, é aquilo com que se parecem de fora.
Há uma hora, Luísa e Miguel assistiram ao enterro do terceiro ponto do seu triângulo. Sobram uma linha. Curta, forte.
Miguel sempre estranhara o pai, como quem estranha um estranho que todos os dias se senta à mesa de jantar e fala sozinho. Ainda assim, sentirá a sua falta. É até possível que se esqueça de como o pai o formou, deformando-o.
Por outro lado, se coubermos nas reentrâncias de Luísa, esgueirando-nos pelo canal auditivo e penetrando o espaço da consciência, encontraremos, entre o ramalhete de nervos e exaustão, um botão adocicado. Uma novidade.
Miguel vai enfiando os pacotes no saco reciclado de forma desordenada, enquanto Luísa fala com a empregada da caixa. Debita o número do marido morto sabendo que o faz pela última vez. O filho coloca a garrafa de Coca-Cola sobre as batatas fritas. Vão ficar todas partidas. Essa ruína prometida deslumbra-a.
Bóia
— E depois ela disse — teve a lata de dizer — que precisávamos de fazer contas. Imagina — que tínhamos de dividir os custos do que eles tinham comprado no primeiro dia —, quando eu cozinhei para eles todos os dias — quando nós os deixámos dormir no nosso quarto — quando eles dormiram na nossa — nossa! — cama, no nosso quarto. Eles não têm noção — não têm respeito —, imaginas, querida? Consegues imaginar?
A imaginação ficava-me curta, de tamanho infantil. A minha amiga era tão gorda que se derramara em grandes vagas sobre o local público que havíamos acordado (que ela determinara após recusar a minha sugestão). Eu sobrava na cadeira.
— São tão forretas — quer a minha cunhada quer o marido —, tão agarrados. Estão cheios dele — dinheiro não lhes falta —, ele ganha bem — e ela também ganhava, antes de deixar de trabalhar para ser artista —, ele ganha tão bem que vivem os dois, sozinhos, num T5 no Parque das Nações. Sim — sozinhos —, no Parque das Nações. Bem que se podiam oferecer para pagar. Eles sabem — estão ao corrente — da nossa situação. Mas são uns forretas, uns agarrados.
Afundava-me. A minha amiga era opaca, de aço e argamassa, marcando a cadeira com o traseiro redondo. Amolgava-me os olhos suspensos. Queriam fugir-lhe, ver outro lugar, mas não tinham espaço. Era um local público estreito, uma amiga larga e comprida. Afogava-me.
— E sabes, querida — sabes? —, somos sempre nós a ajudar a mãe dela com as despesas. Eles sabem perfeitamente da nossa situação — das nossas dificuldades —, como tu sabes, não são poucas, — eles sabem de tudo —, mas não ajudam a pagar a conta da luz — a factura da água —, nem sequer a conta da luz. A minha sogra é uma pessoa difícil. Tem muitas necessidades — muitas dependências —, mas eles não mexem um dedo para ajudar. Não passam duns forretas — duns mimados, — já disse tantas vezes ao meu marido que a irmã dele é uma forreta — uma agarrada —, e o pior é que — ainda assim — apesar de tudo — a minha sogra acha que tudo o que a filha faz é que está bem, e que o filho — que o meu marido — é que está sempre mal, enfim. Desde miúdos que é sempre assim — desde crianças —, o meu marido é o mártir da família, e o pior é que não se impõe — o pior é que deixa que façam tudo — e depois sou sempre eu a má da fita.
A minha amiga era enorme e salgada. Ainda assim, queria contar-lhe da frase que trazia arrecadada ao peito. Uma bóia de salvação. Não salva-vidas. Uma bóia salva-me-da-vida. Repetia-a dezenas de vezes ao dia. Ao levantar. Ao passar o cartão do metro. Ao sentar-me no sofá ao fim do dia. Trazia-a. Queria contar-lhe. Mas quando?
— O problema da minha cunhada é a inveja. Desde o início — desde o começo — que tem inveja de mim. E sabes porquê, querida? Porque sou a única que a vejo — que sei — como ela é. Ela não é estúpida — ela é tão estúpida —, sabe que a mim não me engana. Ela aproveita-se dos outros. Ela adora roubar a atenção dos outros. Sabes que assim que decidimos ter um menino — que falámos disso à família — ela teve logo de engravidar? Ela não suporta — não aguenta — não ser o centro das atenções. Agora está sempre no grupo dela de WhatsApp — sim, ela tem um grupo de WhatsApp só para falar dela — a partilhar frases inspiradoras sobre a maternidade. A criança ainda nem nasceu — ainda nem está cá fora — e já tem uma relações-públicas, um clube de fãs, um álbum virtual…
Mas quando? A cunhada da minha amiga sentara-se entre nós, sobre a mesa do local público, em topless. Estendia-se, abria-se, desmontava-se. Pingava para o chão sobre os nossos sapatos de meia estação. A boca da minha amiga cobriu-se de espuma, raiva e desejo entremeados. A boca da minha amiga estava limpa.
— É que eles têm possibilidades… Se visses o carro deles, as roupas dela — o T5 no Parque das Nações —, nem ias acreditar. Mas quando vieram passar férias a nossa casa, não pagaram um fio de esparguete — uma gotinha de leite —, ficavam na cama até à uma da tarde. Não fizeram a cama uma única vez — acho que não sabem fazer a cama —, não se ofereceram nunca para cozinhar. E, no fim, disseram que tínhamos de dividir — cortar ao meio — a despesa das compras — das coisitas que tinham trazido do supermercado — logo no primeiro dia.
Os pratinhos encamados uns nos outros. Os talheres tinindo contra a loiça vazia. As pregas da minha amiga recolhendo ao casaquinho de malha.
— Desculpem — com licen… — era só — para levar — para tirar — estas coisinhas… Pronto, já está.
A empregada, cujo rosto não vi, afastou-se anónima com o seu regaço de loiça suja.
Com os olhos desimpedidos da minha amiga gorda, as paredes do local público reapareceram em volta. Papel de parede às riscas, vultos móveis, cacarejares humanos.
Irresistíveis, as palavras cabiam-me na boca. Ganhavam peso. Eram elásticas como pastilha.
Trinquei a frase-bóia.
Quero.
Mor-
rer.
Logo a seguir, arrecadei-a como talismã entre o soutien e o laço dos ossos.
A mesa despida de loiça cobriu-se de hesitação. Finalmente, a minha amiga obesa reparara na minha passividade.
— E contigo, querida? Está tudo bem — estás boa? — como andas? Tens estado tão calada…
De rompante, esvaziei-me do propósito delator. As palavras estendidas eram uma faca apontada. Não confiava nelas. A frase-bóia era uma amável psoríase, cujas abertas ensanguentadas esconderia tão bem quanto pudesse. Dar materialidade à frase que mastigava entre as pregas do cérebro seria como entregar a outrem a chave da última porta.
Era uma porta escura, de grande conforto.
— Ando só cansada. Tens razão, a tua cunhada abusa de ti. Não deves dar confiança a essa gente.
Carolina Fidalgo (Coimbra, 1992) vive atualmente entre Portugal e a Suécia. É licenciada em Línguas Modernas pela Universidade de Coimbra e mestre em Literatura Modernista e Pós-Modernista pela Universidade de Glasgow. Trabalhou como leitora de língua portuguesa na Universidade Normal de Harbin e na Universidade de Desporto de Pequim, na China. Atualmente, dedica-se ao ensino de Português Língua Estrangeira e à revisão literária. Tem colaborado com diversas revistas e antologias portuguesas, nomeadamente a Fábrica de Terror, a Palavrar e a Pacto.
