2 poemas de “Tratado” de Luís Carmelo

Sistema
Há quem diga o mundo
demoradamente
embora o cruzador dos
tempos sombrios
se tenha limitado a
pronunciar a nespereira
do quintal.
Seguiu-se a manivela do
realejo
ao fundo da rua que
apareceu para alimentar
a cartografia das sombras
que anunciam bonança
no fim dos tempos.
Pronunciara as folhas
perenes da árvore
uma a uma
enquanto caíam
desamparadas em
versículos 
de mãos postas entre os
foles do instrumento
e as meias solas sobre o
asfalto
para jogar à bola
(esse inconcreto desejo
de já ter estado
na pele da história a
vitoriar a simples cor
dos néons).

Afinal o cruzador
pronunciara apenas o
novelo
a assarapantar navios de
cartão decompostos pela 
luz
sépia dos sótãos que
nunca chegaria a tocar
por herança.
Pronunciara todos os
rostos que incumbem à
música
espalhada nas ruas do
bairro 
sem ligar ao tabernáculo
de onde deus saiu
sem fechar as portas
a pensar na manivela
nas nêsperas
e no torrão de alicante
que é uma espécie rara
de naftalina solitária
para os dias de festa.
Afinal o cruzador
pronunciara aqueles
anéis
que não se movem
também designados por
tornos imobilizados
que decifram as
diagonais da mente
como quem espalha
mobiliário sintético
pela cidade.
Pronunciara os néons
as bátegas e os primeiros
andamentos.
Nisso se resumiriam os
anos.
Pronunciara-os com o
rigor das válvulas
pois o absoluto só nasce
das coisas desiguais
como as que atam em
movimento
certas partes do coração
aos mandamentos que
acendem as histórias
no ouvido interno.
Pronunciara-os para que
a nespereira fizesse
sombra
sobre o rosto ainda nu
que a desviou sem
sucesso
da cegueira do tempo.



Mito

Escala pelo betume da
travessa das almas
a caminho do primeiro
café da manhã e os
passeios inclinados
retardam a fata morgana
que lhe empresta a
penumbra
para andar.
Noto que se arrasta no 
ponto de encontro 
consigo mesmo 
e reparo logo a seguir 
que sou eu esse quiasma 
de lentidão 
a exorbitar de preguiça 
por causa do céu tão 
exageradamente azul 
que recebe gaivotas 
e outras promessas de 
porvir 
a planar.
Acredito nessa altura que 
é este o meu tempo.
Digo-o ao vento com as 
moscas a fugirem ao 
vazio das portadas 
quase já a dobrar a 
esquina da ladeira que se 
debruça 
entre os beirais, os 
agoritmos e as lambretas 
ideomáticas 
antes de chegar à porta 
do café da dona Glória.
Volto à vaca fria e digo-o 
a monologar com 
indolência recursiva 
porque um copo de água 
nunca vem só e o meu 
tempo é 
uma definição 
convenhamos 
sem quaisquer termos 
nem copulativas nem 
minérios 
e sem ter que extrair o 
cavalinho da chuva.
O meu tempo é alérgico a 
condições a pertenças a 
géneros 
a diferenças a correlatos 
a sinónimos a negações 
a obscuridades 
atributos e a todos os 
animais com penas.
A dona Glória passa-me 
chávena sobre o 
envidraçado do balcão 
e diz-me que está de 
acordo.
Nunca antes o meu 
tempo fora assim o meu 
tempo.
Saí do café tirado de um 
tapete de arraiolos com 
aquela forma 
dos galgos a 
sobrevoarem o ponto 
cruzado e oblíquo 
que é composto por duas 
meias cruzes 
uma das quais tem o 
dobro do comprimento da 
outra 
apesar de se trabalharem 
ambas na mesma altura 
da vida.
Saí do café nesse ponto 
de desencontro comigo 
mesmo: 
um quiasma de lentidão 
que atirei pela janela 
para libertar o pó
saí contra o céu 
exageradamente azul 
que absorvia o voo das 
gaivotas 
e muitas outras 
promessas de porvir 
a desarvorar.

Poemas de “Tratado” (abysmo) semifinalista do Prêmio Oceanos 2019.
Fotografia de Luís Carmelo: Alfredo Cunha


Luís Carmelo é um escritor português, nascido em Évora (1954).   Doutorado em semiótica pela Universidade de Utreque (Holanda), é autor de uma vasta obra que inclui dezena e meia de romances, diversos ensaios e alguns volumes de poesia. Está editado em Portugal, Brasil, Espanha, Moçambique e (este ano ainda) na Colômbia.A mais recente trilogia, composta pelos romances Gnaisse (2015), Por  Mão Própria (2016) e Sísifo (2017), foi editada pela Editora Abysmo (Lisboa).
Prémio de Ensaio da Associação Portuguesa de Escritores, 1988. Finalista de vários prémios (o mais recente do Prémio Literário Casino da Póvoa / Correntes d´Escritas-2019). Adaptação ao cinema do Romance A Falha (2002) pelo realizador João Mário Grilo.
Cronista no Expresso (2005-2009), na RTP1 (2013) e actualmente no Hoje Macau.
Desde 2008, dirige a EC.ON – Escola de Escritas (http://escritacriativaonline.net/) e desenvolve parcerias, nesse âmbito, com o CVC (Instituto Camões). É editor da Nova Mymosa. Inventa e desenha cidades.

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