Sistema
Há quem diga o mundo
demoradamente
embora o cruzador dos
tempos sombrios
se tenha limitado a
pronunciar a nespereira
do quintal.
Seguiu-se a manivela do
realejo
ao fundo da rua que
apareceu para alimentar
a cartografia das sombras
que anunciam bonança
no fim dos tempos.
Pronunciara as folhas
perenes da árvore
uma a uma
enquanto caíam
desamparadas em
versículos
de mãos postas entre os
de mãos postas entre os
foles do instrumento
e as meias solas sobre o
asfalto
para jogar à bola
(esse inconcreto desejo
de já ter estado
na pele da história a
vitoriar a simples cor
dos néons).
Afinal o cruzador
pronunciara apenas o
novelo
a assarapantar navios de
cartão decompostos pela
luz
luz
sépia dos sótãos que
nunca chegaria a tocar
por herança.
Pronunciara todos os
rostos que incumbem à
música
espalhada nas ruas do
bairro
sem ligar ao tabernáculo
sem ligar ao tabernáculo
de onde deus saiu
sem fechar as portas
a pensar na manivela
nas nêsperas
e no torrão de alicante
que é uma espécie rara
de naftalina solitária
para os dias de festa.
Afinal o cruzador
pronunciara aqueles
anéis
que não se movem
também designados por
tornos imobilizados
que decifram as
diagonais da mente
como quem espalha
mobiliário sintético
pela cidade.
Pronunciara os néons
as bátegas e os primeiros
andamentos.
Nisso se resumiriam os
anos.
Pronunciara-os com o
rigor das válvulas
pois o absoluto só nasce
das coisas desiguais
como as que atam em
movimento
certas partes do coração
aos mandamentos que
acendem as histórias
no ouvido interno.
Pronunciara-os para que
a nespereira fizesse
sombra
sobre o rosto ainda nu
que a desviou sem
sucesso
da cegueira do tempo.
Mito
Escala pelo betume da
travessa das almas
a caminho do primeiro
café da manhã e os
passeios inclinados
retardam a fata morgana
que lhe empresta a
penumbra
para andar.
Noto que se arrasta no
ponto de encontro
consigo mesmo
e reparo logo a seguir
que sou eu esse quiasma
de lentidão
a exorbitar de preguiça
por causa do céu tão
exageradamente azul
que recebe gaivotas
e outras promessas de
porvir
a planar.
Acredito nessa altura que
é este o meu tempo.
Digo-o ao vento com as
moscas a fugirem ao
vazio das portadas
quase já a dobrar a
esquina da ladeira que se
debruça
entre os beirais, os
agoritmos e as lambretas
ideomáticas
antes de chegar à porta
do café da dona Glória.
Volto à vaca fria e digo-o
a monologar com
indolência recursiva
porque um copo de água
nunca vem só e o meu
tempo é
uma definição
convenhamos
sem quaisquer termos
nem copulativas nem
minérios
e sem ter que extrair o
cavalinho da chuva.
O meu tempo é alérgico a
condições a pertenças a
géneros
a diferenças a correlatos
a sinónimos a negações
a obscuridades a
atributos e a todos os
atributos e a todos os
animais com penas.
A dona Glória passa-me a
chávena sobre o
envidraçado do balcão
e diz-me que está de
acordo.
Nunca antes o meu
tempo fora assim o meu
tempo.
Saí do café tirado de um
tapete de arraiolos com
aquela forma
dos galgos a
sobrevoarem o ponto
cruzado e oblíquo
que é composto por duas
meias cruzes
uma das quais tem o
dobro do comprimento da
outra
apesar de se trabalharem
ambas na mesma altura
da vida.
Saí do café nesse ponto
de desencontro comigo
mesmo:
um quiasma de lentidão
que atirei pela janela
para libertar o pó
saí contra o céu
exageradamente azul
que absorvia o voo das
gaivotas
e muitas outras
promessas de porvir
a desarvorar.
Poemas de “Tratado” (abysmo) semifinalista do Prêmio Oceanos 2019.
Fotografia de Luís Carmelo: Alfredo Cunha
Luís Carmelo é um escritor português, nascido em Évora (1954). Doutorado em semiótica pela Universidade de Utreque (Holanda), é autor de uma vasta obra que inclui dezena e meia de romances, diversos ensaios e alguns volumes de poesia. Está editado em Portugal, Brasil, Espanha, Moçambique e (este ano ainda) na Colômbia.A mais recente trilogia, composta pelos romances Gnaisse (2015), Por Mão Própria (2016) e Sísifo (2017), foi editada pela Editora Abysmo (Lisboa).
Prémio de Ensaio da Associação Portuguesa de Escritores, 1988. Finalista de vários prémios (o mais recente do Prémio Literário Casino da Póvoa / Correntes d´Escritas-2019). Adaptação ao cinema do Romance A Falha (2002) pelo realizador João Mário Grilo.
Cronista no Expresso (2005-2009), na RTP1 (2013) e actualmente no Hoje Macau.
Desde 2008, dirige a EC.ON – Escola de Escritas (http://escritacriativaonline.net/) e desenvolve parcerias, nesse âmbito, com o CVC (Instituto Camões). É editor da Nova Mymosa. Inventa e desenha cidades.