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UM CAMPO DE LAVANDA AO PÔR DO SOL
O sopro da vida é o Espírito —
assim pensava ao olhar o Campo de Lavanda
que aos poucos me devorava
se insinuando lilás perfume.
Ao longe a casinha pobre dos comedores de batata,
a íris dos lírios na província dos teus olhos,
os ciprestes, as oliveiras e a vinha encarnada.
Apenas a lavanda ensolarada
com tua luz em meio aos campos mórficos;
ouvir a voz de Van Gogh perto do coração selvagem:
Só podemos falar através das nossas pinturas de coração aberto
— Assim escreveu em tuas cartas para Théo.
24 anos, teologia em Amsterdã,
depois partiu para a Bélgica
e foi pregar o evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo
aos trabalhadores de uma mina de carvão.
Amou os pobres e deu até o que não tinha.
E depois, de cem anos de solidão,
o disparo do revólver enegreceu o campo de trigo
com a tinta dos corvos espargida na camisa branca.
Eis o que herdamos de nossos ancestrais;
a insensatez que veio ao mundo,
pela revolução das guilhotinas
e ao mundo veio, pela boca faminta de Holodomor.
O sol, candieiro que D’us deu aos homens
para o inquietante banquete da vida.
E o Rei Eterno, em sua Ira, oculta
a luz desse candieiro com uma sombra
de mau presságio para as nações;
datado em 14 de outubro.
E mau presságio no dia 28
com a lua de sangue eclipsando
o coração de Israel.
Foi o sol ferido em densas trevas
e a lua mergulhada em círculo de sangue.
Luzeiros do céu sinalizando o fim dos tempos.
Guerras, os crimes de guerra, o sangue inocente
e mais guerras, até que venha de D’us a fúria;
a vingança sagrada através das sete taças da ira.
O machado é pesado, a foice é atroz e a luta feroz.
O amor é leve, o outono é breve e a vida deve
às tuas sementes plantadas na superfície da terra,
apoiadas em pequenos talos, nos calos a verve
e no veludo da pele, ferve do orvalho o vinagre,
cada semente guarda dentro de si um milagre.
Cobriram os meus olhos os cabelos do sol
e por um instante já não era mais o sol,
mas um vaso de girassóis gravado
nas lembranças do porvir.
E já não era mais um vaso de girassóis
— óleo sobre tela —
era a coroa de uma princesa soberba
e a natureza viva do teu dorso feminino
sobre o flanco dos cavalos ciganos;
Ela se despia em dourada floração sobre o campo de lavanda
refletindo entardecer, um lince à espreita tua pata felina,
e teus brincos, sem perceber, eram os cornos do muflão.
Teu abraço era vasto e castigou-me a delicadeza e teu capricho.
E me deu água para beber e me deu vinho para beber
e para beber me deu absinto e rasgou meu fígado
para alimentar a raposinha vermelha;
a minha orelha decepada, em um lenço embrulhada,
ela deu para uma loba comer.
Assim ela veio com o sol e partiu ao se pôr,
como a águia mergulhando atrás dos montes;
eu imerso na lavanda me esvaindo em verso,
em filamentos azuis pedaços de mar em flor,
só nos restou do vento o açoite
das pequenas coisas o amor
e finalmente,
ao despertar,
teremos de encarar
as implacáveis criaturas da noite.
O sopro da vida é o Espírito —
assim pensava ao olhar o Campo de Lavanda
que aos poucos me devorava
se insinuando lilás perfume.
Ao longe a casinha pobre dos comedores de batata,
a íris dos lírios na província dos teus olhos,
os ciprestes, as oliveiras e a vinha encarnada.
Apenas a lavanda ensolarada
com tua luz em meio aos campos mórficos;
ouvir a voz de Van Gogh perto do coração selvagem:
Só podemos falar através das nossas pinturas de coração aberto
— Assim escreveu em tuas cartas para Théo.
24 anos, teologia em Amsterdã,
depois partiu para a Bélgica
e foi pregar o evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo
aos trabalhadores de uma mina de carvão.
Amou os pobres e deu até o que não tinha.
E depois, de cem anos de solidão,
o disparo do revólver enegreceu o campo de trigo
com a tinta dos corvos espargida na camisa branca.
Eis o que herdamos de nossos ancestrais;
a insensatez que veio ao mundo,
pela revolução das guilhotinas
e ao mundo veio, pela boca faminta de Holodomor.
O sol, candieiro que D’us deu aos homens
para o inquietante banquete da vida.
E o Rei Eterno, em sua Ira, oculta
a luz desse candieiro com uma sombra
de mau presságio para as nações;
datado em 14 de outubro.
E mau presságio no dia 28
com a lua de sangue eclipsando
o coração de Israel.
Foi o sol ferido em densas trevas
e a lua mergulhada em círculo de sangue.
Luzeiros do céu sinalizando o fim dos tempos.
Guerras, os crimes de guerra, o sangue inocente
e mais guerras, até que venha de D’us a fúria;
a vingança sagrada através das sete taças da ira.
O machado é pesado, a foice é atroz e a luta feroz.
O amor é leve, o outono é breve e a vida deve
às tuas sementes plantadas na superfície da terra,
apoiadas em pequenos talos, nos calos a verve
e no veludo da pele, ferve do orvalho o vinagre,
cada semente guarda dentro de si um milagre.
Cobriram os meus olhos os cabelos do sol
e por um instante já não era mais o sol,
mas um vaso de girassóis gravado
nas lembranças do porvir.
E já não era mais um vaso de girassóis
— óleo sobre tela —
era a coroa de uma princesa soberba
e a natureza viva do teu dorso feminino
sobre o flanco dos cavalos ciganos;
Ela se despia em dourada floração sobre o campo de lavanda
refletindo entardecer, um lince à espreita tua pata felina,
e teus brincos, sem perceber, eram os cornos do muflão.
Teu abraço era vasto e castigou-me a delicadeza e teu capricho.
E me deu água para beber e me deu vinho para beber
e para beber me deu absinto e rasgou meu fígado
para alimentar a raposinha vermelha;
a minha orelha decepada, em um lenço embrulhada,
ela deu para uma loba comer.
Assim ela veio com o sol e partiu ao se pôr,
como a águia mergulhando atrás dos montes;
eu imerso na lavanda me esvaindo em verso,
em filamentos azuis pedaços de mar em flor,
só nos restou do vento o açoite
das pequenas coisas o amor
e finalmente,
ao despertar,
teremos de encarar
as implacáveis criaturas da noite.
***
A PRAGA
“Você não temerá os terrores da noite,
nem a flecha que voa de dia,
nem a praga que ronda a escuridão”
— Assim meu pai
me ensinou a rezar.
Iam caindo os primeiros, adoentados,
depois os amedrontados.
Iam caindo, no início aos poucos,
depois aos montes caíam.
À direta e à esquerda iam caindo.
Pobres e ricos iam caindo.
Brancos e pretos iam caindo.
Crianças e idosos iam caindo.
“Veio da África” — uns diziam.
“Da china” — outros retrucavam.
Ninguém sabia.
Os animais caíam mortos
e mortas caíam as aves do céu.
E os peixes boiavam mortos
e mortos rastejavam os répteis.
Os jornais noticiavam,
as TVs aterrorizavam,
os governos confabulavam,
as farmacêuticas manipulavam,
os lobistas apostavam.
E com a pandemia todos lucravam.
Caíram a bolsa de valores e o dólar.
Caíram a produção de alimentos,
o comércio e a prestação de serviços.
Escolas e universidades foram fechadas.
E foram fechadas as igrejas e as indústrias.
Os degenerados caíram e caíram os criminosos.
Os idiotas caíram e caíram os influencers.
Os especialistas caíram e caíram os conspiradores.
“Veio da Antártida” — uns diziam.
“Do Ártico” — outros retrucavam.
Ninguém sabia.
Iam caindo de um lado
e de outro lado iam caindo.
À esquerda e à direita.
Ateus e religiosos, iam caindo.
Nativos e estrangeiros, iam caindo.
Famosos e anônimos, iam caindo.
“Veio da Índia” — uns diziam
“Do Brazil” — outros
retrucavam.
Ninguém sabia.
Iam caindo os policiais e soldados
ao toque de recolher.
Iam caindo os prisioneiros
em suas casas.
Iam caindo os médicos e enfermeiros
nos hospitais.
Iam caindo os mascarados
sem face.
Iam caindo os vacinados
pela ciência.
Os selos foram abertos,
as trombetas soaram
e derramadas foram as taças.
Pela nova pestilência
todos foram caindo,
à direita e à esquerda.
Foram caindo os orgulhosos
e caindo foram os vaidosos.
Foram caindo os corajosos
e caindo foram os covardes.
As grávidas caíam e suas almas
flutuavam ao entardecer.
As virgens caíam e suas almas
voavam sobre os edifícios.
Os sem-teto caíam e suas almas
flanavam nos becos e viadutos.
À esquerda e à direita
foram caindo caindo.
O pai não soube o que responder
ao filho, quando caiu a sua mãe.
A mãe não soube o que fazer
quando viu caindo, um a um, seus filhos.
“Veio do Egito” — uns diziam —
“Uma nova praga! É o juízo de D’us”
Depois de um tempo
era o que todos diziam.
“Mil podem cair ao seu lado, dez mil
à sua direita; mas nada o atingirá.
Apenas mantenha os olhos abertos.”
— Assim minha mãe me ensinou a rezar.
Agora, já ninguém sabia dizer
se felizes aqueles que caíram
ou se aqueles que ficaram.
“Você não temerá os terrores da noite,
nem a flecha que voa de dia,
nem a praga que ronda a escuridão”
— Assim meu pai
me ensinou a rezar.
Iam caindo os primeiros, adoentados,
depois os amedrontados.
Iam caindo, no início aos poucos,
depois aos montes caíam.
À direta e à esquerda iam caindo.
Pobres e ricos iam caindo.
Brancos e pretos iam caindo.
Crianças e idosos iam caindo.
“Veio da África” — uns diziam.
“Da china” — outros retrucavam.
Ninguém sabia.
Os animais caíam mortos
e mortas caíam as aves do céu.
E os peixes boiavam mortos
e mortos rastejavam os répteis.
Os jornais noticiavam,
as TVs aterrorizavam,
os governos confabulavam,
as farmacêuticas manipulavam,
os lobistas apostavam.
E com a pandemia todos lucravam.
Caíram a bolsa de valores e o dólar.
Caíram a produção de alimentos,
o comércio e a prestação de serviços.
Escolas e universidades foram fechadas.
E foram fechadas as igrejas e as indústrias.
Os degenerados caíram e caíram os criminosos.
Os idiotas caíram e caíram os influencers.
Os especialistas caíram e caíram os conspiradores.
“Veio da Antártida” — uns diziam.
“Do Ártico” — outros retrucavam.
Ninguém sabia.
Iam caindo de um lado
e de outro lado iam caindo.
À esquerda e à direita.
Ateus e religiosos, iam caindo.
Nativos e estrangeiros, iam caindo.
Famosos e anônimos, iam caindo.
“Veio da Índia” — uns diziam
“Do Brazil” — outros
retrucavam.
Ninguém sabia.
Iam caindo os policiais e soldados
ao toque de recolher.
Iam caindo os prisioneiros
em suas casas.
Iam caindo os médicos e enfermeiros
nos hospitais.
Iam caindo os mascarados
sem face.
Iam caindo os vacinados
pela ciência.
Os selos foram abertos,
as trombetas soaram
e derramadas foram as taças.
Pela nova pestilência
todos foram caindo,
à direita e à esquerda.
Foram caindo os orgulhosos
e caindo foram os vaidosos.
Foram caindo os corajosos
e caindo foram os covardes.
As grávidas caíam e suas almas
flutuavam ao entardecer.
As virgens caíam e suas almas
voavam sobre os edifícios.
Os sem-teto caíam e suas almas
flanavam nos becos e viadutos.
À esquerda e à direita
foram caindo caindo.
O pai não soube o que responder
ao filho, quando caiu a sua mãe.
A mãe não soube o que fazer
quando viu caindo, um a um, seus filhos.
“Veio do Egito” — uns diziam —
“Uma nova praga! É o juízo de D’us”
Depois de um tempo
era o que todos diziam.
“Mil podem cair ao seu lado, dez mil
à sua direita; mas nada o atingirá.
Apenas mantenha os olhos abertos.”
— Assim minha mãe me ensinou a rezar.
Agora, já ninguém sabia dizer
se felizes aqueles que caíram
ou se aqueles que ficaram.
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Mateus Machado é anti-poeta, escritor e ensaísta, formado em gestão ambiental pela Faculdade Prof. Luís Rosa (Jundiaí). Em 1997 foi cofundador e diretor de cultura da AEPTI (Associação dos Escritores, Poetas e Trovadores de Itatiba-SP). Participou em antologias e na revista literária Beatrizos (Argentina), vencedor de prêmios literários, entre eles, Ocho Venado (México), e um dos finalistas do Mapa Cultural Paulista (edição 2002). Entre 2017 e 2018, foi aluno de música clássica indiana com o citarista, escritor, tradutor e poeta Alberto Marsicano. Autor dos livros publicados Origami de metal (poemas, Editora Pontes, 2005), com prefácio do poeta Thiago de Mello; A mulher vestida de sol (poemas, Editora Íbis Líbris, 2007); A beleza de todas as coisas (poemas, Editora Íbis Líbris, 2013), com prefácio de Alberto Marsicano, onde finalizou sua primeira etapa como anti-poeta; As hienas de Rimbaud (romance, Editora Desconcertos, 2018); 17 de junho de 1904 — O Dia que não amanheceu (ensaio, Editora Caravana, 2022), sobre a obra do escritor irlandês James Joyce, e Nerval (poemas, Editora Caravana, 2022), um livro de transição. Em 2023, iniciando uma nova fase no seu trabalho, publicou o primeiro livro da trilogia Poiesis Religare, intitulado YHVH, pela UICLAP, através de autopublicação. Agora, em 2025, está publicando o novo livro de poemas O Evangelho segundo as HQs, pela Editora Mondru, iniciando a sua segunda trilogia poética. Atualmente está finalizando o livro Um bode para Adonai — outro para Azazel. É autor do canal de literatura Biblioteca D Babel no YouTube.
Para adquirir o livro https://mondru.com/produto/o-evangelho-segundo-as-hqs
Canal YouTube http://www.youtube.com/@bibliotecaDBabel
E-mail mateusmachadoescritor@gmail.com
Instagram @poiesis_religare
Respostas de 9
UM CAMPO DE LAVANDA AO PÔR DO SO: lírico, tóxico, um raio de carisma sem garantias e de escatologia sem prévia punição. A punição fica no plano do poético para o eu que o constrói.
Os poemas são narrativos, mas sem permitir esquecermos que, durante a leitura, são poemas!
Isso nem sempre acontece com quem arrisca com poemas narrativos.
A PRAGA: Menções bíblicas do Apocalipse; um João contemporâneo a um inferno onde todos povoam ( ou cabem lá ) num talvez de um social que não oprime a rigor enquanto se desdobra. Não se trata de poesia declarando um social já vivido pelo leitor. Não há, pois, teses; há uma reação que aproxima sem trazer ou questionar conflitos e soluções. Bons poemas Matheus Machado.
Muito obrigado, Monteiro, pela leitura dos poemas e pelas observações críticas, muito bem pontuadas. Um abraço.
É sempre um deleite a poesia de Mateus Machado. A maestria com que navega por intertextos é única e escassa em nosso tempo. Também a coragem para certos temas e menções é, ao meu ver, admirável. A leitura desses dois poemas me fez ansiar ainda mais pelo encontro com a obra em sua íntegra.
Obrigado pelas gentis palavras! Um abraço.
Parabéns pelo poema maravilhoso! Que continue sempre se expressando com essa beleza e inspiração.
Obrigado pelas gentis palavras.
Belos poemas; você prende a atenção do leitor de forma brilhante. São imagens ricas e luminosas. Seus poemas se assemelham à T. S. Eliot
Obrigado, Theodor, pelo comentário. Abs
Belos poemas; você prende a atenção do leitor de forma brilhante. São imagens ricas e luminosas. Seus poemas se assemelham à T. S. Eliot