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Foto de Tima Miroshnichenko |
MÃE NÃO É TUDO IGUAL
Antes de termos filhos, listamos mentalmente todas as coisas que queremos fazer diferente do que nossos pais fizeram em relação à educação e criação de seres humanos. Não é nem que achemos que nossos pais tenham sido incompetentes, é mais aquela ideia de que tendo noção do resultado final (você mesmo) dá vontade de tentar uma outra abordagem pra ver se resulta em algo melhor. Um pouco de experiência social, com pitadas de prepotência, um toque de evolução, banhado em autocrítica, servido com espuma de toxicidade materna.
Independente do que fizermos, nossos filhos, quando crescerem, também pensarão no que farão de diferente na criação dos filhos deles. É o ciclo da vida. O engraçado nisso tudo é que há algumas coisas que, mesmo não achando assim tão boas, repetimos, e há frases que toda mãe diz.
Embora pareça, essas frases não são o “lugar-comum” de mães. Elas são, na verdade, uma corrente, tipo aquelas do
Orkut, do WhatsApp, que não se pode romper. A coisa é tão bem-feita que, quando nos damos conta, já estamos dentro da Corrente; só descobrimos isso quando se dá a situação e da ponta da língua salta aquela fala chavão.
A primeira vez que pude dizer para minha filha “tu não é todo mundo”, me senti até mais leve! Fiz uma dancinha ridícula pelas costas dela para comemorar que eu tinha feito a roda girar. É como se tivéssemos esperado a vida inteira para mandar a corrente adiante. Dá até um alívio no coração. Sempre quando digo essas coisas faço uma pequena comemoração
sem que as meninas vejam. É libertador dizer “quer ver que vou chegar aí e achar?”, “ah, tá, então se ela se jogar da ponte tu te joga junto?”, “porque eu tô mandando”.
E nessa véspera de Dia das Mães, faço essa revelação bombástica: mães não são todas iguais, apenas entramos em uma corrente sem saber, e é vital que passemos adiante. Por favor, não rompa a corrente. Não, você não terá azar, não será
amaldiçoada ou qualquer coisa parecida, mas vai perder a chance de se divertir por ser alguém totalmente prosaico. No final, você, fazendo diferente ou não, daqui a uns vinte e tantos anos terá alguém querendo fazer diferente do seu diferente e se deparando com situações semelhantes e repetindo mais ou menos as mesmas coisas. Então, não tenha medo de ser a mãe que manda levar um agasalho. Gasta à vontade esse “na volta a gente compra” pra não ter que dar uma aula de economia doméstica. Abusa do “tu não é todo mundo”, porque isso só prova que a pessoa é todo mundo, mas é o todo mundo que está sob sua responsabilidade até atingir a maioridade.
Feliz domingo para todas que fazem parte dessa corrente milenar! Perdão por revelar nosso segredo aos iludidos que
achavam que éramos clichê!
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O DIREITO DE COMPRAR CANUDOS
Um dia, estava eu comprando decoração para uma festa infantil em uma loja dessas que já foram chamadas de 1,99 e hoje tiveram os juros corrigidos para tudo por 10 reais, quando me deparei com canudos, digamos, fálicos. Na verdade, eram literalmente canudos de piroca.
Sou muito canguinha, não precisava deles para uma festa infantil, considerando que não sou entusiasta da fake news da mamadeira de piroca, portanto, não os adquiri. Mas devo confessar que a possibilidade de comprá-los, assim como quem tem direito a ter um CPF próprio, tem direito ao voto e pode sair do país sem precisar de autorização do marido, em comunhão com o capitalismo e a sociedade do efêmero, despertou em mim um desejo de consumo. Tanto que fotografei o acessório de drinks de estética questionável e enviei para todo mundo que o acharia exótico, engraçado (poderia dizer gozado, mas talvez seja infame demais).
Dia 30 de dezembro passado, voltei à loja para comprar alguns itens para a festa de réveillon, desta vez acompanhada de alguns amigos e do meu marido. Não tínhamos em mente comprar os “dicky sipping straws”, mas foi uma decepção quando não os encontramos pendurados na gôndola do estabelecimento. Eis que meu marido, numa tentativa de me ver ficar da cor de um tomate, perguntou para a vendedora sobre os tais canudos, dizendo que eu estava procurando por eles. A moça simpática foi no estoque e achou um último pacote. Depois disso, mais constrangedor que comprar seria não comprar. E assim como quem pode frequentar a escola, criar um partido político, do jeitinho de quem pode ter conta em banco, da mesma forma que se tem o direito ao divórcio, da maneira que podemos ter passaporte próprio, eu e uma amiga investimos R$ 10,00 em inúteis picanudos, algo totalmente impensável antes de 1800.
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SOBRE O MUNDO, SELFIE E TRENS
Enquanto eu tomo um café preto cedinho, buscando conectar meu cérebro ao corpo e ao mundo, leio uma notícia sobre uma ciclista que foi fazer uma selfie ao lado de um trem em movimento em Minas Gerais e acabou atingida pela locomotiva. A moça não morreu por gentileza do capacete. Nessa história, Narciso usava EPI (equipamento de proteção individual). Ainda que diga em entrevistas que não foi a óbito porque Deus tem um propósito maior para ela. O que não é de todo descabido, afinal, sabemos que o Todo-Poderoso tem uma estranha predileção por seres que descreem das teorias
evolucionistas. Já imagino a moça pregando sua estupidez em algum templo duvidoso e sendo idolatrada por sua insipiência. Ninguém está imune a fazer besteira, mas acho que seria menos indigno dar um certo crédito ao capacete.
Encaminho a notícia e escrevo, dando voz à idosa que mora dentro de mim: “Amiga, o mundo tá perdido!”. Sigo tomando o meu café e lembrando que, há um tempo, li em algum lugar que morrem mais pessoas por selfie do que por ataque de tubarão. Pensa no risco que a moça correu? Antes tivesse ido nadar na Praia de Boa Viagem, mas, provavelmente se o fizesse, estaria tão distraída fazendo uma selfie que acabaria pisando no rabo de um tubarão, e corríamos o risco de registrar uma morte por selfie seguida de ataque de tubarão. Pensa nessa manchete? Pensa nessa selfie? Quantas curtidas
teria? Será que seria um viral póstumo?
Passou o dia e o algoritmo, esse sabichão que sabe mais sobre nós que nós mesmos, me confidenciou que o caso de Minas Gerais não tinha sido o primeiro acidente envolvendo selfie e trem na semana. Uma moça no México teve a mesma genial ideia de fazer uma selfie bem pertinho de um trem em movimento, tão pertinho que o trem bateu em sua cabeça, tal qual a ciclista brasileira. Mas o Narciso mexicano não usava EPI e morreu no local.
É, amiga, o mundo tá perdido!
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Uma resposta
Crônicas da vida nua e crua, o que exige talento, destreza em conduzir o delicado passado desapercebido na prosa que fala em pretensão. Como se antes do prédio não houvesse o terreno. Como se antes do escritório não houvesse o café dos operários que encaixaram todas as peças dos acolchoados. Nua e crua são as ruas atraindo a violência dos homens, as casas desvendando o que o bairro comenta, a cisma da família, o problema do vizinho. Crônicas para nos surpreendermos com o que sempre esteve embaixo de nosso nariz. O compromisso com o que deixamos debaixo do tapete, porque a correria sufoca. A correria vira crônica. a "pretensão" é que tudo é crônica, e poucos sabem disso.