são muitas as variações para se dizer
a mesma coisa.
a casa, o pasto, a glória, o físico
compasso em que dois corpos deram adeus
ao mesmo espaço. isso nunca me aconteceu
antes, a voz
diz toda plácida seus próprios
estômagos, mesmo sem saber dos
nudes enviados em segredo para o
sagrado enredo
das profanações. muito já
se disse e sempre se repetem os fatos,
ainda que não caiba mais ninguém na ironia
dos passos. não
mais adianta correr, é sempre
a morte na praia do nado. mas
fazer o quê? viver é essa microfonia
que cega das
frases a voz, e a gente sempre
se repete para as ânsias do mundo.
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invento a pergunta mais impossível
a fim de me apoderar dos verões
nos corpos suados. como um leão
que se apega às presas e ama com
sangue nos dentes, percebo a violência
no escuro das ruas. entre as calçadas
exerço a ilusão de querer de volta
os restos de pele dispersos nas
camas onde deitei. ergue-se um
muro feito desde os nossos passados
membros, cabeça, o dorso imerso no
cultivo de mãos que seguram em vão
o percurso de um salto dado às cegas
os pés desenham o descompasso. cria-se
a pergunta fundamental, inscrita
no desfecho da voz que esquece seu
itinerário. os caminhos se cruzam
naquele que se permite chegar
ao próprio silêncio e nele ficar.
invento uma pergunta que me faça
querer a plena incoerência entre
bocas narizes pernas aprendizes.
quero ouvir o escuro dos
seus olhos e dizer tudo
aquilo que me escapou
deitar na malha puída
do seu ventre e beber todos
os vícios. quero poder
deixar as mãos onde meu
corpo falha e devorar
o brusco peso das chuvas
reconciliar as horas
com os sonhos não vividos
quem sabe agarrar as pedras
lançadas contra o meu crânio
quando apedrejado numa
tarde de inverno. desejo
acordar no dia mais
longo do verão a fim
de correr amontoado
de cadarços, inventar
tempestades em seus dentes
e bem mais tarde saltar
por sobre o sorriso da
boca vermelha como o
pôr do sol de alguma praia
Fábio Pessanha é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em livros e periódicos sobre sua pesquisa a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. Ministrou presencialmente cursos, rodas de leituras poéticas e oficinas de poesia em diversos lugares, tais como: Faculdade de Letras da UFRJ, Biblioteca Parque de Niterói, COART / UERJ, Atelier Casa 4 de Arte e Filosofia. Durante a pandemia tem ministrado oficinas online de poesia. É autor de A forma fugaz das mãos (Patuá, 2021), A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Assina a coluna “palavra: alucinógeno” (https://viciovelho.com/palavra-alucinogeno), na revista Vício Velho, com publicações sobre o poema e suas performances dialogantes. Tem poemas publicados em diversas revistas eletrônicas.