3 poemas de “Câmera lenta” de Marília Garcia

 

 
 
terremoto

um terremoto replicando
por vários dias,       
à noite as luzes de néon paradas
e, na manhã seguinte,
a tremedeira outra vez.
você pensa que o futuro
ainda não chegou, mas     
de repente o terremoto
replicando faz tremer a língua    
os dentes e tudo o que é
matéria.

por mais que use as palmas
para cobrir os ouvidos,
ternura — o que você quer dizer? —
aliás, a tremura chega
arrastando tudo.
era como um país virando mar
um terremoto replicando
sem parar. se as réplicas consistem
em tremedeiras,  e se uma língua é desenhada
fora das linhas,
como conciliar o
inconciliável?, pergunto
no momento de maior
desligamento e
ele responde:
— agora o seu wasabi
tem radioatividade.
essa cor brilhante,
de um verde quase prata,
era como a luz batendo no mar
bem na hora em que o chão —
e tudo recomeça.

quero pedir
silêncio, mas não sei lidar
com o imponderável.
um dia acordo
e não espero
mais resposta.



em loop, a fala do soldado

vivo numa caixa preta
de 20 centímetros.
vejo o mundo por um visor,
no meio uma cruz
para mirar as coisas
prédios  estradas   objetos   cachorros.

tudo que passa pelo quadro
vira alvo, então penso em algo
linear: você já reparou que algumas imagens
se repetem?de repente,
um cisco no olho.
“eu vivo numa caixa preta”,
disse. estamos sentados
lado a lado no trem
— em silêncio— os dois de calça verde
e camisa branca.
sei que não está tudo bem,
levanto o olhar tentando alcançar
o dele e ouço apenas a voz
de frente para o alvo.
vivo numa caixa preta, diz,
e eu não sei como parar
a repetição.





antes do encontro

procurar uma escada de madeira
dando para o abismo
é uma ação que só pode acontecer nesta língua
estranha e numa cidade cortada por um rio
que fique no meio dos dois
(quando um precisa ir embora
para sempre)

mas um dia ela chega
com a pergunta:
                        — o que vem à sua cabeça
quando digo a palavra
amor?

um dia desce no meio do dia
e vê. e um dia vê a peça lilás sobre a quina da mesa
quando volta.ele diz saltar. saltar para fora.
e atravessa na esquina
procurando a escada. depois diz que quer saltar
para fora desta canção.

mas um dia chega com
a pergunta:
                        — o que vem à sua cabeça quando
digo a palavra amor?
e ela responde
que amor em japonês
se diz /ai/.

e, de repente, um branco.
as linhas se tornam cada vez mais
quebradiças. um banco parado no meio da cena,
um quadrado iluminado e a frase mais longa
que ele me disse nos últimos
seis meses.

o que significa um cachecol vermelho
pinicando sozinho?
uma abelha, pensa, mas o cachecol pinicando,
voando como uma abelha, talvez um inseto
estridente, incidente para ouvir quando ele
chegar e vir.

            agora sobrou apenas a estática
tremendo e você a leva de volta até o barco:
— a estática?, pergunta, você lembra
daquela vez? e ela fica parada na chuva
com o colete salva-vidasesperando
alguma coisa acontecer.

[aqui o telefone
vibra na bolsa e um parêntese
para dizer que não sabe onde está mas é longe
não sabe onde está mas é frio
não sabe onde está mas é quase.
ao ouvir a voz,
parece de verdade,
e então ele levanta e me diz algo
sobre o fim
                        ou sobre o sim
e toca na tela uma imagem
do filme]


Poemas de “Câmera lenta” (Companhia Das Letras) semifinalista do Prêmio Oceanos 2018.
Fotografia de Marília Garcia: Renato Parada.




Marília Garcia nasceu no Rio de Janeiro, em 1979. É autora dos livros  20 poemas para o seu walkman (2007), engano geográfico (2012) , Um teste de resistores (2014)  e Câmera lenta (2017) . Atualmente mora em São Paulo .
 

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