sirene
o som persegue o gesto de uma língua íntima
dissolve o abraço, suspende o ser, sabe do ser a areia
o escoamento do tempo
essa nossa linguagem tardia
o muro
o amanhã
a tinta de uma memória
estilhaços de uma escrita a se dissipar nas paredes
miragem de um ser mútuo que sem saber sangrava o antes
o amor
gritando na rua
dentro da gente
silenciosamente
a violência de uma palavra.
lilith
e a palavra se fez pênis
o verbo sólido silêncio, a lei
por minha sombra ancestral
deus do meu eu
expulsa foste da terra
carnal a tua culpa carnal
da sombra eterna nutri a violência
o código
o castigo
as práticas
o subterrâneo do meu ser
sou eu a sombra do teu silêncio
o teu nome sempre a se (a)pagar do tempo
névoa
a-história
aprendi do meu corpo, quando estranha o teu corpo, a solidão de todas as palavras
não sou deus
não sou pai
não sou senhor
são todos esses nomes abismo
para ser amor
eu sei o teu nome
no sangue de uma nossa língua reaprendo a dissolver a hóstia no céu da minha boca
sem medo
partilhamos um corpo mútuo
aproximo-me do leite e da lágrima
lavo os teus cabelos
ainda vejo o silêncio gritar em cada músculo da tua face quando fechas os olhos em mim.
desertos
quando as palavras eram a parede áspera e quente dentro da noite
esse teu fêmeo silêncio sextavado em minha língua perfurava o branco
o teu vestido negro, o gosto do cigarro em tua boca, a limalha da saliva
aquilo oculto na linguagem diante do corpo que vestíamos e gritávamos
dentro do silêncio a memória das mãos
dentro do beijo o saber agridoce do sangue
dois bichos farejavam
o sexo e a língua um do outro
dois bichos em busca de um silêncio
à erosiva hora
aprender a andar pela margem árida
a pele, o corpo magro, o tempo
a fome, o nervo, o amor, o minério
a terra ausente em que dois corpos se escavam
lavoura turva que sabemos de um livro invisível
tudo era a miragem da fome que alimentava o fogo
esse precipício sobreposto à palavra entre os dentes
quilha de um corpo feito dos meus e dos teus pedaços
na memória da queda tu eras a água antes de ser o nome
à erosiva hora
margem mútua
dois corpos queimam todas as línguas
existimos
há um livro para se aprender a ler no escuro
quando as palavras não alcançam o silêncio desta dor no peito.
Ilustrações: Anabela Sequeira
Fotografia de Daniel Leite: Tiago Fezas Vital
Daniel da Rocha Leite é advogado e licenciado pleno em Letras, com habilitação em Língua Alemã. Recebeu, em 2007, o Prêmio Carlos Drummond de Andrade / SESC-DF. No mesmo ano, também pelo SESC-DF, foi finalista do Prêmio Machado de Assis. Em quatro edições esteve entre os escritores do Prêmio de Literatura do Instituto de Artes do Pará. Com o romance Girândolas, em 2009, recebeu o Prêmio Samuel Wallace Mac-Dowell da Academia Paraense de Letras. Entre poesia, romance, contos, crônicas e literatura infanto-juvenil, possui dezesseis livros publicados. Agora, em 2018, voltou a receber o Prêmio Carlos Drummond de Andrade / SESC-DF.