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Anselm Kiefer, Seraphim, 1983-84
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SOB ESCOMBROS
Sempre houve os que escavam
a terra, mortos-vivos; e inflamam
o corpo recompondo ossos, músculos,
órgãos nevrálgicos e segundos,
em busca do ponto exato de fuga;
escavam com a língua as nuvens
do cérebro (sentimentalismo inútil);
escavam, com os braços impuros,
que nos couberam, o atalho de cada
verso. Somos esta raça intrépida –
que se diga sem orgulho e sem sofisma –
dos que contemplam o horror,
como Kiefer sobre a escada de argila
e palha, e escavam; ou, como Velazquéz,
frente ao cavalete, em Las niñas,
dos que fixam o oculto, e igualmente
escavam. O oculto é o nada, ao redor
do qual o artista pinta (ou escreve).
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Andy Warhol – “Querelle” (1982) |
A LÍNGUA
O que ensina a pop arte: um cão na soleira
da porta é uma hidra; no copo vazio vive
oimarcescível cacto; dorme na Gioconda
um abcesso encefálico. Toda arte é abstrata:
de Da Vinci a Goya; de Ticiano a Velasquez;
a cidadela de Borges é a Venezade Guardi.
Entre quatro tábuas e um arame, há sempre
uma nova geometria. O Artista, a Língua, a Obra
são, portanto, o artifício que não eleva, o corte
que não edifica. Busco a forma (inexata) não
para adequá-la, mas por um impuro e vicejante
prazer, que não estanca. Chegamos ao vermelho
deste quadro, que invade o dorso do rapaz.
É um barco que voa, uma nave no espaço,
uma enguia elétrica no mapa-múndi do corpo.
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Egon Schiele, Seated Male Nude (Self-Portrait), 1910
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RÉPTIL
Erguido entre dois pontos, és o que somos: máscara
castanha com miolos arrancados por um deus que
nunca amamos. No teu corpo desenham-se inumanos
mapas. Cada encontro dos membros com o tronco
(bacia e omoplatas) tem um ângulo obtuso. Os bicos
do peito deveriam ser sugados. Quem sabe assim
acordam? Os braços e pernas são patas; a língua
(não se vê no quadro) logo logo talvez capte insetos
no espaço; o pênis (em esboço) é um aquário
devastado, peixe sem água. Ao menos – isto o salvava –
SÉRGIO NAZAR DAVID (1964) nasceu em Além Paraíba (Minas Gerais). Poeta, ensaísta, professor de Literatura Portuguesa (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), membro da “Equipa Garrett” (Centro de Literatura Portuguesa / Universidade de Coimbra), é autor dos livros de poemas Onze Moedas de Chumbo (Rio de Janeiro, 7Letras, 2001), A Primeira Pedra (7Letras, 2006, indicado ao Prêmio Portugal Telecom 2006) e Tercetos Queimados (7Letras, 2014); e de ensaios Freud e a Religião (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2003), O Século de Silvestre da Silva (vol. 1, Lisboa: Prefácio, 2007; vol. 2, Rio de Janeiro, FAPERJ/ 7Letras, 2007). Organizou as edições críticas de Cartas de Amor à Viscondessa da Luz (7Letras, 2004; e Famalicão, Quasi Edições, 2007), de Correspondência Familiar (Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2012, “menção honrosa” – Prémio Grémio Literário) e de Correspondência para Rodrigo da Fonseca Magalhães (Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2016, “menção honrosa” – Prémio Grémio Literário), de Almeida Garrett. Integra a antologia 6 poetas de Argentina & 6 poetas de Brasil (Buenos Aires, Bajo la Luna, 2011, org. e trad. de Camila do Valle e Teresa Arijón). Tem colaborado em jornais e revistas: O Publico (Lisboa), Colóquio/Letras (Lisboa),Arquivos(Lisboa) ,Relâmpago (Lisboa),Prosa & Verso (O Globo), Mais! (Folha de São Paulo) e Poesia Sempre (Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional).