3 poemas de Rosa Maria Mano

Ilustração: Hermin Abramovitch
GÊNESIS

O deus era um verbo?
O verbo sonhar entre dois negrumes?
Uma passarela para outro verbo?
Era um pensamento flutuante?
Uma arca submersa no engano,
uma nave partindo de multiverso?
O deus era um pomo de luz
guardado no futuro?
Era um caos reinventando a ideia?
Um rio em permanente parto?
O deus sabia prever os cursos?
Prematuro, parte, distúrbio no coração da estrela
em gestação

engendrando arcabouços,
gaiolas de água ou firmamento?
Por que não me fez a alma dura como a dele?


FRUTA EXTREMA

Por que não me perguntas quando será a hora
de deslizar pelas encostas e encontrar o fundo?
O meu corpo nunca é água, embora eu seja.
Olho pra mim e vejo terra 
e um fogo ostensivo dentro dela.
Ama-me enquanto ainda posso 
te buscar intensa, vasta e áspera,
ardente sumo de uma fruta extrema.
Ama-me enquanto a tinta se renova
e resvala todos os muros.
Enquanto ainda o amor não é arroio.
É rio mítico de lágrima e susto,
correndo como a vida, a extinguir-se.


O VERMELHO SOBRE O CORPO

Se pareço água é uma ilusão noturna.
É negro o veio por onde escorro,
ígnea e insalubre.
Um furo na memória agasta a poderosa esfinge da
finitude, 

insone desgaste da engrenagem.
Rastro escapado da tocha estilhaça o nervo.
Busca o punho do perfume um olfato que desfaz o
doce das favas,

manifesto em azul-turquesa.
Era meu o contorno esfumaçado?
Quando eu era, qual a cor que se parecia comigo?
Em que dorso de ave cavalgava?
Com qual labareda eu alumbrava a minha espécie
desgovernada, devorada pelo verde da tempestade?
Apenas pretendia os vastos da fome,
o tempo do amor derramado, o vermelho sobre o
corpo.

A voz da noite engana os sentidos.
E é negro e cego o veio onde sou fogo,
mas pareço água.


ROSA MARIA MANO

POEMAS DO LIVRO “MANUSCRITOS DE FOGO”, PARA 2019, PELO BOX 4 DA COLEÇÃO MARIANAS

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