4 poemas de Airton Souza

I
nos olhos de ícaro o peso côncavo das asas
não solidifica a escura sede em seu rosto
longínqua, a sede é expressão atravessada
de poente
& perscruta o barro de paisagens que
abrigam
o que há dentro do vestígio territorial da
enunciação:
exílio
ícaro tem em seu dorso inominados abismos
sua carne convoca o ímpeto retilíneo pelo
inútil
é ela quem oferta o perdulário peso das
pálpebras
ou o silêncio do sul naufragado na fome
para sangrar a quietude de deus
quando voltam a surgir pássaros nas sílabas
a rugosidade da distância oriental do azul
pesa sobre a memória hirta de ícaro
e faz ele soluçar depois de incendiados
nomes
à parte, ícaro vagueia entre os índicos e o
grito
dessa interrogação umedecida pelo chão
recolhe a nudez estatuária das mãos
e vai anunciando o peso da infância
onde deveria está os sintagmas ondulantes
do mar.
II
ícaro converte o rosto à distância de ontem
em silêncio atravessa os fonemas da
palavra:
egeu
só ela consome o clamor das rezas
que em síntese abrigam nele noites inumeráveis
onde às mãos feridas de iscariotes
servem-lhe para afagar a elucidação
da fome de cristo pela sentença:
“por que me abandonaste, pai?”
de todos os horizontes profanados no
coração de ícaro
nenhum preenche o homem & seus desertos
nenhum retém em si a extensão: pássaro ou
alfazema
eles estão sujos da tessitura da cruz
e prontos a expor para sempre a pergunta:
“por que me abandonaste, pai?”
nessa tarde de abril é irreversível não
perguntar:
como este clamor reparte, entre nós,
sem tormento, o desígnio amor,
depois de repousar as dores de um cristo
arrependido?
 
III
nas mãos molhadas de unção
ícaro enxerga as margens de outros litorais
tentando comover a casa depois da fome
resta em seus olhos o testemunho da carne
mas somente amanhã ele compreenderá
como caligrafar a impiedade dos horizontes
desanoitecidos pela nudez de deus
ícaro gesta a promessa de compor ilhas
para elaborar o propósito de feridas
que sejam capazes de negar o mar
hoje ser triste é isso:
possuir chão no corpo, em vez de ossos.
IV
é de umbrais a dispersão da carne de ícaro
& atravessa a afiançada língua dos dias
na tentativa de definir a ideia da asa
ou a dimensão afigurada no silêncio verbal
esboçado por um pássaro andaluz
espantado pela aliteração negada as
estrelas
ícaro desdobra-se no princípio da fé
desenhará depois a assonância do voo
como quem aparta um oceano sem manhãs
e coloca de um lado a linguagem devastada
de deus
e do outro o tumulto das mãos dos homens
querendo a qualquer custo explicar em
gênesis
como um espírito move sua face sobre as
águas
ícaro queria uma voz lhe dizendo: haja asa!
assim seria mais fácil compreender
as ruínas de sua imagem e semelhança
insinuada no corpo de deus.
 Ilustrações: Odilon Redon
 
 
 
Airton Souza é poeta e professor. Nasceu em Marabá, no Pará. Já venceu diversos prêmios literários, entre eles: Prêmio Proex de Literatura, 5º Prêmio Cannon de Poesia, Prêmio Dalcídio Jurandir de Literatura 2013, IV Prêmio Proex de Arte e Cultura,  III Prêmio de Literatura da UFES, promovido pela Universidade Federal do Espírito Santo, com o livro de poemas Cortejo & outras begônias, Prêmio LiteraCidade Prosa 2014, Prêmio Gente de Palavra 2017, Prêmio Carlos Drummond de Andrade 2017, promovido pelo Sesc de Brasília e só início de 2017 esteve entre os vencedores de mais de 25 prêmios literários, entre eles venceu o Prêmio de Poesia Cruz e Sousa, promovido pela Editora Do Carmo, de Brasília, o Prêmio Vicente de Carvalho, promovido bienalmente pela da União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro,o Prêmio da Academia Ferroviária de Letras e o Prêmio Nacional de Literatura da Fundação Cultural do Pará, com o livro de poemas o tumulto das flores. É mestre em Letras, com ênfase nos estudos literários, pela Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. Possui poemas traduzidos para o espanhol, inglês e alemão.

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