quantastragédias compõem o arcabouço de um homem?
o pai está morto antes do inverno
a mãe soterrada dentro do desespero
a mulher inevitavelmente está muda
depois da noite e sua triste solidão
o filho que ainda não aprendeu
a consumação da palavra: amor
teimosamente caminha para um rio longe do mar
será que o arcabouço de um homem
é presumível para suportar suas próprias tragédias?
longe do dia inútil
há uma primavera para gestar a desilusão
perto da ferida aberta
há outras geografias nos olhos
revestidas por uma dor sem justificativa
& o homem ainda procura respostas
antes do provérbio devorar
todos os significados da crença em agonia.
*
para os pais que morreram antes do inverno
incapaz de traduzir a terra
amparada na distância entre o pai
& a dissidência da ondulada casa
[ essa sentença da estrada dentro da fome ]
aconteço para sublinhar o corpo
por que elucidar esquecidas feridas
é o ofício material de perguntar:
como perdoar as cicatrizes do mar
abertas depois de anunciados atlânticos
da árvore a rondar a canção
no coração de deus?
a terra, a casa, o pai e deus
são as insustentáveis levezas das coisas
erguidas no rio que corre dentro dos olhos.
*
carrego a cavidade das janelas
[ hiato penumbrando meus olhos ]
& a voz dorsal do menino
que não ternura paraísos
na promessa do rosto hieroglifaram:
a breve asa em escuta
a definição possessiva da terra
ou a invenção íngreme da angústia
guardadas na pele da mobília em desuso
à parte, o mundo é isso:
trágico percurso gramatical
tombado pelo chão.
para Leonice Souza que me
ensinou como enfrentar os tigres antes de amar
ensinou como enfrentar os tigres antes de amar
enquanto Drummond diz:
…, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
os tigres de Celan rodeiam a casa
estão famintos dentro da genealogia da fé
& de todo o princípio entre o verbo e a carne
pois descobriram que o coração é imponderavelmente telúrico
enquanto Drummond repete:
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá
eu penso todos os dias
na receitade como lavrar a misericórdia
só para enganar a mim mesmo
sobre os tigres e o amor.
Airton Souza é poeta e professor. Nasceu em Marabá, no Pará. Já venceu diversos prêmios literários, entre eles: Prêmio Proex de Literatura, 5º Prêmio Cannon de Poesia, Prêmio LiteraCidade de Poesia 2013, Prêmio Dalcídio Jurandir de Literatura 2013, IV Prêmio Proex de Arte e Cultura, III Prêmio de Literatura da UFES, com o livro de poemas Cortejo & outras begônias, Prêmio LiteraCidade Prosa 2014, Prêmio Gente de Palavra 2017, Prêmio Carlos Drummond de Andrade 2017, promovido pelo Sesc de Brasília e só início de 2017 esteve entre os vencedores de mais de vinte e cinco prêmios literários, entre eles o Prêmio de Poesia Cruz e Sousa, promovido pela Editora Do Carmo, o Prêmio Vicente de Carvalho, pela da União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro, o Prêmio da Academia Ferroviária de Letras e o Prêmio Nacional de Literatura da Fundação Cultural do Pará, com o livro de poemas o tumulto das flores. Atualmente é mestrando de Letras, com ênfase nos estudos literários, pela Universidade Federal do Sul e Sudeste domPará. Possui poemas traduzidos para o inglês, espanhol e alemão.