GRAU ZERO.
o bem-te-vi abre a garganta
e, se auto-intitulando, canta.
o ouvido modula tal frase
e supõe no canto um texto.
o olvido, para outro eixo.
para novo começo, o zero.
muda o ouvido: tom por tom
o bem – te – vi emite sons.
o canto se desfaz, só som.
o nome se esvai – ave, só.
o pássaro, com só a voz,
volta a entoar o som do om.
e, se auto-intitulando, canta.
o ouvido modula tal frase
e supõe no canto um texto.
o olvido, para outro eixo.
para novo começo, o zero.
muda o ouvido: tom por tom
o bem – te – vi emite sons.
o canto se desfaz, só som.
o nome se esvai – ave, só.
o pássaro, com só a voz,
volta a entoar o som do om.
(de Réquiem, 2012)
***
do planeta Vênus a oscilar por trás das nuvens,
um jorro de sinapses:
o veludo dos amores-perfeitos de Ushuaia,
beleza frágil sob a lâmina do vento;
também, grandeza a la Gigante Adamastor,
a imponência dos Andes noturnos em sítio a Águas Calientes;
A tenra tez da palavra durazno
também,
no compasso do impacto de um leão-marinho morto à rambla
[de Montevideo
e do gosto de sal de um grão de Uyuni;
Tais referências, o que em comum?
a saber: talho fundo em corpo raso,
inúteis signos de viagem, olha,
aquela estrela a sumir, vencida
pelo sol nascente, estela-
símbolo deste ciente, e logo
eu, dono de pouca sombra no chão?
(de Constelário, 2016)
![]() |
Ilustração: Madd \Louise |
um polvo tinta o buraco da fechadura.
da nuvem escura floresce um universo:
ainda que mais explorado que o oceano,
é nele – sua profundeza – que – sidérico –
o olho d’água desse mistério se espelha.
olha se não é um rio leitoso que murmura,
apenas afluente nesta hidrografia,
intrincadas linhas da palma de uma mão,
como a minha, como achar tua companhia
naquele allegro de agranulados de estrelas?
restou, no vácuo do espaço, outro molusco,
fonte da minha tinta pro registro em sépia,
na fotografia, caco de paisagem,
e o mero memento, como não poderia,
no vão, meu coração esplender em poinsétia?
(de Constelário, 2016)
***
à lâmina d’água, peixes a boiar,
palafitas à vista – sob cheiro intratável,
o da consciência das cidades:
o rio Tietê, o Yangtze, o Reno,
o Newtown, o Ganges, o Congo,
também o Marilao e o Citarum:
artérias à espera de angioplastia,
à espera, como os cabelos verdes,
arrancados pelo gado, pela soja,
pelo contrabando de troncos,
pelo projeto progressista que,
no pecado Capital da gula de Gargântua,
diz não poder parar:
dita flor que, se for, só se do Jardim Gramacho.
no que aviões furam a cúpula de nuvens,
calota poluída sob a qual,
ruído,
gases de automóveis ascendem,
paradigma para os graus centígrados:
escalpelado de seus polos, o planeta,
nave abafada, a nos cobrar o óbulo.
(de Constelário, 2016)
Anderson Lucarezi é escritor, professor e tradutor. Publicou Réquiem (Ed. Patuá, 2012), livro vencedor do Programa Nascente USP 2011, e Constelário (Ed. Patuá, 2016). Como tradutor, publicou, em parceria com Lucas Zaparolli de Agustini, a tradução Gravuras Japonesas (Benfazeja, 2017), livro de John Gould Fletcher. Mantém o blog de poesia, tradução e crítica tudo-esta-dito.blogspot.com