
Sal
o tímpano e a voz
escorados
um no outro
caixa craniana
que empresta ressonância
à carne esponjosa para
percutir a voz
a cada vez
que ela se dá à órbita
da boca aos ouvidos
algo dos seios
da face
se preenche
se preenche
até perfurar-se
consumir-se
esvaziar-se
esfarelar-se
o tímpano
na voz de minha mãe
a cada volta dos insistentes rasgos da demanda
rachadas as fibras
da voz
extrai-se
o sal
que pinga
pinga
pinga
para enfim
dar
lugar
ao silêncio
da madrugada.
Nossas peles
O sol rente ao peito
e a pressão do sal –
cristal ancestral –
em meus olhos
me prometem
prometem voltar
o balanço do mar
ao cheiro doce do
sargaço que embala
os sonhos na costa
prometem montar
o poente laranja como
sela ao frio
da baía de São Francisco
ou dos montes de
Joaquim
prometem sacar
o fogo ao âmbar do querer
que dá corpo
à experiência minha
de homem em casca
prometem arrebentar
na calçada o chão
que retorna
à raiz
e que numa osmose plácida
escreve:
o que se tem de vida é
vida passando de lá para cá
em nossas peles.
O incidente do cedro libanês
Quando falo
falo fonemas
mastigados
consoantes frouxas
vogais suadas
ritmo meio corcunda
como o andar
sopesante dos
Elias.
O que posso dar
então, senão um
riso que se ri com
os olhos e o canto
da boca?
Senão a ironia
da espada agastada
do mouro que guarda
apenas a geometria das palavras?
Assisti à vó fazer-se solene
diante do cedro direto do Líbano
no quintal plantado.
O cedro não era senão de Mococa
a matriarca, seus olhos cinzas
rajados de marrom
tragava a narrativa
um Minister
deixando cair a cinza
de sua ancestralidade.
Brasil é máquina de moer ficções
como mascates, vagamos
eu e ela
e o que resta de história
é al-catrão que
mancha
de amarelo
nossas mãos.
águas
matéria:
virar água
como Bruce Lee
virar água
turva de ribanceira
pensar água
e lambê-la
vê-la evaporar
sufocá-la
e condensar
e tremer e voltar
descer as coxas
30° de ângulo
ao oceano
água dura
secar
virar água é
virar sal
Atacama
luzir ao espaço
lançar-se ao mar.
Felipe Bier Nogueira nasceu em 1985, em Campinas, São Paulo. É psicanalista, poeta e doutor em Teoria Literária pela USP. O livro Baleia marca a estreia na poesia, e como objeto sedimentar, é acúmulo de uma produção de anos. Enquanto poeta, considera-se mascate, atravessando os territórios da prosa, da teoria, da psicanálise. A poesia é o limite da palavra, o lugar para onde as histórias dos outros, secas pelo sol, são levadas de volta à carne.
