4 POEMAS DE “O LUME E A FÁBULA” DE ROSA MARIA MANO

Ilustração: Leonora Carrington



A PALAVRA
A palavra fala ao cemitério dos barcos.
Cega e inútil, desdentada e lenta.
Soa estrangeira aos ouvidos das meninas.
Castra o futuro dos meninos.
Onde a palavra que cava sua própria fenda-esconderijo?
O pulso da Terra acelera serpentes nobres,
aviva as lavas, mescla estrelas e lodo.
Há um corvo em cada ancoradouro
e uma canção de exílio presa ao remo de quem não chega.
Pela palavra, sangram os pulsos em alto mar.
Desce a lua tecendo um casulo que guarde os mortos.
E a palavra emudece na esterilidade dos altares.

A FOME

Digo da fome de fome que se alimenta
da esperança que brota dos olhares.
Fome de pérolas que arrebenta as conchas
e subtrai a vida e guarda, avara, o coração da fauna.
Fome do outro, da veia, da carne, 
da alma que aprendeu alumbramento.
Fome vampiresca do coração e da pele,
do sexo, do riso, da fé.
Fome de pólvora, seu cheiro, seu rastro
rasgando os calcanhares das meninas,
rompendo as mãos dos meninos,
quebrando seus dentes e mascando sangue.

Tenho, aqui dentro, uma vela que escapa.
Lívida rosa arroxeada, vida longa,
alma breve no gume da garra do leopardo.
O risco de um bordado macabro 
– dilacerado quadril do recém chegado.


A ÁGUA

Havia, na espessura da noite,
um jarro parindo o rio.
E o rio havia tragado
todas as lonjuras, as horas,
o tempo que pilotava um remo.
Havia, na tristeza por amanhecer,
uma muralha de hibiscos-albatrozes,
descobridores de peixes cegos.
Havia o transbordo em busca do delta.
A alma que comia as próprias raízes,
pássaros desbotados picando as margens.
Famintos, a água e o tempo numa cópula 
que fervia antes do sexo, no nascedouro,
onde florescem as primeiras gotas,
o inaugural instante que fermenta o vinho.
A FÁBULA
Poema dedicado a Silvio Campos.

O ácido do crepúsculo comia nozes
nos vãos do telhado.
Eu era cria de um morcego muito velho,
que sabia assoviar imitando o vento.
Longe do mar eu sangrava uma concha desabitada
e cultuava a chama azul de seda e lírios.
Silo de água nas palmas, o gosto do sal
adornava o amor ateu,
mortal, residual veneno
nas papilas que sonhavam
androceu e gin.
A velha que mora em mim
vasculha o antigo forro.
Busca o morcego pra lembrar do vento.

 ROSA MARIA MANO

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