Ilustração: Leonora Carrington
A PALAVRA
A palavra fala ao cemitério dos barcos. Cega e inútil, desdentada e lenta. Soa estrangeira aos ouvidos das meninas. Castra o futuro dos meninos. Onde a palavra que cava sua própria fenda-esconderijo? O pulso da Terra acelera serpentes nobres, aviva as lavas, mescla estrelas e lodo. Há um corvo em cada ancoradouro e uma canção de exílio presa ao remo de quem não chega. Pela palavra, sangram os pulsos em alto mar. Desce a lua tecendo um casulo que guarde os mortos. E a palavra emudece na esterilidade dos altares.
A FOME
Digo da fome de fome que se alimenta da esperança que brota dos olhares. Fome de pérolas que arrebenta as conchas e subtrai a vida e guarda, avara, o coração da fauna. Fome do outro, da veia, da carne, da alma que aprendeu alumbramento. Fome vampiresca do coração e da pele, do sexo, do riso, da fé. Fome de pólvora, seu cheiro, seu rastro rasgando os calcanhares das meninas, rompendo as mãos dos meninos, quebrando seus dentes e mascando sangue.
Tenho, aqui dentro, uma vela que escapa. Lívida rosa arroxeada, vida longa, alma breve no gume da garra do leopardo. O risco de um bordado macabro – dilacerado quadril do recém chegado.
A ÁGUA
Havia, na espessura da noite, um jarro parindo o rio. E o rio havia tragado todas as lonjuras, as horas, o tempo que pilotava um remo. Havia, na tristeza por amanhecer, uma muralha de hibiscos-albatrozes, descobridores de peixes cegos. Havia o transbordo em busca do delta. A alma que comia as próprias raízes, pássaros desbotados picando as margens. Famintos, a água e o tempo numa cópula que fervia antes do sexo, no nascedouro, onde florescem as primeiras gotas, o inaugural instante que fermenta o vinho.
A FÁBULA
Poema dedicado a Silvio Campos.
O ácido do crepúsculo comia nozes nos vãos do telhado. Eu era cria de um morcego muito velho, que sabia assoviar imitando o vento. Longe do mar eu sangrava uma concha desabitada e cultuava a chama azul de seda e lírios. Silo de água nas palmas, o gosto do sal adornava o amor ateu, mortal, residual veneno nas papilas que sonhavam androceu e gin. A velha que mora em mim vasculha o antigo forro. Busca o morcego pra lembrar do vento.
ROSA MARIA MANO
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Uma resposta
A poesia recebe uma nova aura, iluminada, suave, no trabalho de Amaité. Grata a todos os envolvidos. E que imagens!