ENTRE-LUGARES
1
És, no fundo, todas as amadas que tenho
E que em ti reúnes
em meio à obliquidade da memória
és o cheiro mesclado do teu corpo
sob minhas árvores
porque amar é presença
e memória
e a memória é lençol de gozos recuperados
Não desistiremos do ser em nós
não menos que o ideal aqui agora
de ser o que esperamos
de quem quer que seja apenas outro
Porque sei também que qualquer ato
é recuperação dos amantes no amado
À tua frente, eu não sou eu tu
não és tu
senão talvez nós milifolhados em mil amantes
e amados
Amada
teu corpo desnudo tem o cheiro rescendente
de um campo fresco de amadas
numa alameda de plátanos
2
Meu desejo é para a trilha em que partiste
porque amor é ramalhete
de estação, ferro e caminhos
deslize como de água tarjado de faixas
amarelas e perigos de inundação
Amor é não estar aqui, mas apenas de passagem
pelos entroncamentos
onde te encontras
ou onde te vejo de trespasso para um lapso, um dia
um lugar não lugar lábio-lábil
No desvão dos vagões nos terminais nos aeroportos
no voo possível do acontecer, nas coincidências
parte-se
inundado de nenhuma e/ou de múltiplas existências
TRAIÇÃO
Poeta hermético não vive, reserva-se
para o risco, que é razão e tabuleiro
enquanto seu lobo não língua, beijo-te
em tua lisura, nádega ávida
branca
escura
Nestes dias, poesia, te esqueço
que a beleza seja minha fissura
ÁSPERO AMOR
Gozo espontâneo, como és raro e exíguo
sempre tramado entre o som e o sentido
Sobre os lençóis, és celeiro contido
como uma escrita em seu preservativo
Em minha cama, abolidos os filhos
Exorcizo tua sombra, Valéry
CONCHA
Por desconhecido, não faço poemas de amor
Minhas mãos, cegas, procuram o corpo onde estavas
e sem moedas no prato descem um pouco mais
para encontrar apenas fome em si mesmas
Minhas mãos tocam o recheio do meu próprio corpo
até gozarem na promessa tateante de um [outro] corpo
onde estavas
O amor resta um desconhecido a que eu chamo concha
ou vazio, ou continente
A que hora do dia eu me esvazio? Quanto mais te toco
mais me encho e emagreço repetido
antes e depois do sempre
e sempre, e sempre, e sempre
SELF
Ninguém acreditaria
que trago no bolso
a foto de um urso pândega
numa praça de libidinagens
Ninguém acreditaria
que trago nos ombros
um fardo de chocalhos da infância
e de não poucas hospedarias
estantes de meninas da adolescência
pó branco de bichos-da-fartura que matei
para assumir sua maldição de acúmulo inútil
Estas roupas aqui não durarão um ano
sobre a pele de um ciscunspecto
Nada revelar, tudo supor
ou deixar supor, eu não quereria
ser o homem de vidro
há muita podridão aqui
há muita podridão aí
se fores igual a mim
Mas suspeito que não
porque o mundo me escolheu a mim
e somente a mim, o único
para carregá-lo
A não ser que você ame fotografias
Ilustrações: Sarah/deviantART
Antonio Aílton Santos Silva é poeta, professor, pesquisador, ensaísta. Lançou Cerzir (Penalux, 2019); Martelo & Flor: horizontes da forma e da experiência na poesia brasileira contemporânea (EDUFMA, 2018); Compulsão Agridoce (Paco Editorial, 2015); Os dias perambulados e outros tOrtos girassóis (Fundação de Cultura de Recife-PE, 2008); Humanologia do Eterno Empenho: conflito e movimento trágicos em A Travessia do Ródano, de Nauro Machado; As habitações do Minotauro (EdFunc, 2001). Membro da Academia Ludovicense de Letras – ALL, cadeira de Maranhão Sobrinho.
antonioailton.wordpress.com
Uma resposta
Lindas poesias.