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Ilustração: Gilad Benari |
Caudal
Singro o rio multifário
das verdades ocultas,
das hordas dissimuladas
desses homens absurdos.
Sinto-me também absurdo,
nestas águas de clausura.
E tanto — sutil paradoxo —,
que me liquefaço, inerme,
pela correnteza atroz.
Para que nasça, de mim,
um ser que resuma tantos,
como parte da carência,
como projeção em outros
tão iguais e tão diferentes
entre si, entre todos. Entre
fios de redes ancestrais,
que submetem ao destempo.
Este rio caudal, que anseia
um mar sereno (horizonte
obliterado): deságue
de seus veios transversais,
repletos de anomalias
em corpos boiando no limbo,
com a alma dilacerada
pela negação e o desdém
de seres também anômalos.
Estranho que sou, de mim.
Eles (o espelho que evito)
me cindem e me englobam.
Eles me são. Enquanto sangro,
nas vagas da incompletude.
Às vezes, em versos vãos;
noutras, em orgasmos tristes
(gestos vagos, pela ausência
de um olhar que os ilumine).
Esperança per se:
seres em si e nos outros.
Mãos que, assim, delineiem
um mar ainda possível.
Canto para um menestrel
Para Elomar Figueira Mello
É deveras vasto esse sertão
que se revela em teus palimpsestos,
com esse povo que tu cantas,
no limiar do signo da terra
— pó e barro, visagem ao sol:
serpente a engolir o próprio rabo.
Canto demiurgo: ave de prata
moldada na intenção do voo,
em um movimento intrínseco,
por entre ruínas e castelos
que a litania aviva na memória,
com o fogo ancestral da tua fé.
Neste instante, em meio à agonia,
busco, assim, o Brasil profundo,
que se alheou de si e de nós.
Na ferrugem — pátina do chão —,
sob os cascos duros dos carneiros,
que não sabem dos homens perdidos.
Um país e seu povo imanente
a emergir das águas, em teus rios,
forjados na quimera atemporal
[num tempo, então, eclesiástico,
marcado no chapéu, em tua fronte],
raiz deste teu arcadismo cristão.
Enquanto esse cantar me trespassa,
alhures, a cidade se enreda
na algaravia de palavras ocas,
em ladainhas, rituais e mitos,
nos miasmas, entre ruas e becos,
que seduzem os homens perdidos.
Menestrel de fímbrias e de teias,
quisera contigo fazer um pacto,
com o sangue arrancado ao golpe
do espinho do mandacaru;
segredar temores, ao abrigo da arte,
com esperança: palavra-pão.
Em galope, num arranjo de cordas,
atravessar, veloz, este deserto.
E recriar outro país [o mesmo],
na pulsação do nosso povo de antes,
redivivo em notas e compassos
que irmanassem os homens perdidos.
Entrevisão
Era de manhã, por certo,
embora houvesse sono,
desalento e cansaço.
Nos olhos semicerrados,
fuligem acumulada.
Um tipo de fogo-fátuo
atravessava a janela
dos olhos, sem gelosia,
a calcinar todo o medo
convertido em vertigem.
O aço fendia as têmporas,
que entornavam espantos
coagulados de eras.
Era o momento exato
para extirpar o passado.
O lençol do silêncio
cobria cabeças pensas.
Na memória obliterada,
tais imagens se fundiam
sob a neblina espessa.
Não havia paralelos,
nem retas ou azimutes.
Apenas um farfalhar
de folhas, talvez de asas,
indicava o caminho.
E eu, assim, à mercê
daqueles vultos soturnos,
entre os quais, disfarçado,
o algoz me espreitava.
Tudo isso eu entrevia.
Aletheia nº 3
A verdade está
e não está
no papel.
[Nem no inferno
nem no céu.]
Intuição e sina,
a verdade sopra
por baixo da batina.
Subjaz aos dogmas,
corrói preces e ritos,
desconstrói os mitos.
A verdade fala
pelo sim e pelo não.
[Há meias-verdades
no sótão
e fantasmas no porão.]
A verdade é um cão
sem plumas.
A verdade exuma
corpos, fotos e fatos.
A verdade é artefato,
é coquetel molotov.
Esférica, não se move.
Não caduca. Não morre.
A verdade grita
nas ossadas de Perus,
nas pernas dobradas
do Herzog.
A verdade não é jogo
que se jogue.
A verdade é fogo.
Du/elo
O metal
rompe as fibras
do corpo
do outro.
O ato
perpetua o vínculo
entre
matador
& morto.
A vida
feita irmã
da morte.
EDELSON NAGUES é natural de Rondonópolis/MT e radicado em Brasília/DF. Premiado em vários concursos literários, tem textos publicados em antologias impressas e em diversos blogs e revistas digitais, como: Mallarmargens, Musa Rara, Germina, Zunái, Samizdat, Ruído Manifesto, Literatura & Fechadura, entre outros. Publicou, pela Editora Scortecci, em 2012, os livros Humanos, de contos, e Águas de clausura, de poesia (vencedor do X Prêmio Literário Livraria Asabeça), e pela Editora Patuá, Palavras para estrangular silêncios, de poesia (2019). É coautor do CD ANAND RAO, no CD ANAND RAO musica poemas de EDELSON NAGUES (2013) e organizador da coletânea Respeitável público: histórias de circo e outras tragédias (Editora Penalux, 2015).