5 poemas de Edelson Nagues

Ilustração: Gilad Benari
Caudal

Singro o rio multifário
das verdades ocultas,
das hordas dissimuladas
desses homens absurdos.
Sinto-me também absurdo,
nestas águas de clausura.
E tanto — sutil paradoxo —,
que me liquefaço, inerme,
pela correnteza atroz.
Para que nasça, de mim,
um ser que resuma tantos,
como parte da carência,
como projeção em outros
tão iguais e tão diferentes
entre si, entre todos. Entre
fios de redes ancestrais,
que submetem ao destempo.
Este rio caudal, que anseia
um mar sereno (horizonte
obliterado): deságue
de seus veios transversais,
repletos de anomalias
em corpos boiando no limbo,
com a alma dilacerada 
pela negação e o desdém
de seres também anômalos.
Estranho que sou, de mim.
Eles (o espelho que evito)
me cindem e me englobam.
Eles me são. Enquanto sangro,
nas vagas da incompletude.
Às vezes, em versos vãos;
noutras, em orgasmos tristes
(gestos vagos, pela ausência
de um olhar que os ilumine).

Esperança per se:
seres em si e nos outros.
Mãos que, assim, delineiem
um mar ainda possível.


Canto para um menestrel
Para Elomar Figueira Mello

É deveras vasto esse sertão
que se revela em teus palimpsestos,
com esse povo que tu cantas,
no limiar do signo da terra
— pó e barro, visagem ao sol:
serpente a engolir o próprio rabo.

Canto demiurgo: ave de prata
moldada na intenção do voo, 
em um movimento intrínseco,
por entre ruínas e castelos
que a litania aviva na memória,
com o fogo ancestral da tua fé.

Neste instante, em meio à agonia,
busco, assim, o Brasil profundo,
que se alheou de si e de nós.
Na ferrugem — pátina do chão —,
sob os cascos duros dos carneiros,
que não sabem dos homens perdidos.

Um país e seu povo imanente
a emergir das águas, em teus rios,
forjados na quimera atemporal
[num tempo, então, eclesiástico,
marcado no chapéu, em tua fronte],
raiz deste teu arcadismo cristão.

Enquanto esse cantar me trespassa,
alhures, a cidade se enreda
na algaravia de palavras ocas,              
em ladainhas, rituais e mitos,       
nos miasmas, entre ruas e becos,
que seduzem os homens perdidos. 

Menestrel de fímbrias e de teias,
quisera contigo fazer um pacto,
com o sangue arrancado ao golpe
do espinho do mandacaru;
segredar temores, ao abrigo da arte,
com esperança: palavra-pão.    

Em galope, num arranjo de cordas,
atravessar, veloz, este deserto.
E recriar outro país [o mesmo],
na pulsação do nosso povo de antes,
redivivo em notas e compassos
que irmanassem os homens perdidos.


Entrevisão

Era de manhã, por certo,
embora houvesse sono,
desalento e cansaço.
Nos olhos semicerrados,
fuligem acumulada.

Um tipo de fogo-fátuo
atravessava a janela
dos olhos, sem gelosia,
a calcinar todo o medo
convertido em vertigem.

O aço fendia as têmporas,
que entornavam espantos
coagulados de eras. 
Era o momento exato
para extirpar o passado.

O lençol do silêncio
cobria cabeças pensas.
Na memória obliterada,
tais imagens se fundiam
sob a neblina espessa.

Não havia paralelos,
nem retas ou azimutes.
Apenas um farfalhar
de folhas, talvez de asas,
indicava o caminho.

E eu, assim, à mercê
daqueles vultos soturnos,
entre os quais, disfarçado,
o algoz me espreitava.
Tudo isso eu entrevia.



Aletheia nº 3

A verdade está
            e não está
no papel.

[Nem no inferno
nem no céu.]

Intuição e sina,
a verdade sopra
por baixo da batina.

Subjaz aos dogmas,
corrói preces e ritos,
desconstrói os mitos.

A verdade fala
pelo sim e pelo não.

[Há meias-verdades
                   no sótão
e fantasmas no porão.]

A verdade é um cão
                  sem plumas.

A verdade exuma
corpos, fotos e fatos.

A verdade é artefato,
é coquetel molotov.

Esférica, não se move.
Não caduca. Não morre.

A verdade grita
nas ossadas de Perus,
nas pernas dobradas
                   do Herzog.

A verdade não é jogo
                   que se jogue.

A verdade é fogo.


Du/elo

O metal
rompe as fibras
do corpo
         do outro.

O ato
perpetua o vínculo
        entre
matador
        & morto.

A vida
feita irmã
da morte.



EDELSON NAGUES é natural de Rondonópolis/MT e radicado em Brasília/DF. Premiado em vários concursos literários, tem textos publicados em antologias impressas e em diversos blogs e revistas digitais, como: Mallarmargens, Musa Rara, Germina, ZunáiSamizdatRuído Manifesto, Literatura & Fechadura, entre outros. Publicou, pela Editora Scortecci, em 2012, os livros Humanos, de contos, e Águas de clausura, de poesia (vencedor do X Prêmio Literário Livraria Asabeça), e pela Editora Patuá, Palavras para estrangular silêncios, de poesia (2019). É coautor do CD ANAND RAO, no CD ANAND RAO musica poemas de EDELSON NAGUES (2013) e organizador da coletânea Respeitável público: histórias de circo e outras tragédias (Editora Penalux, 2015).

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