E então
Como liberto de um frasco raro
O aroma quase perfeito
(Jasmim, cardamomo, bergamota,
Limão, benjoim, cravo)
Evoca o apelo do pólen
No batismo do ainda não feito
E o matiz gradiente
Entre o azul e o ouro
Da íris do olho de Deus
Perscruta a seiva das selvas
Ausculta a doçura dos ninhos
Orquestra o balé da ferrugem
No rastro de cinzas da aurora.
Novamente Poesia
Quero viver como quem faz Poesia
Como quem Voa
Como quem Cria
Não como um pássaro que voa
Mas como o Homem de Asas
Você já viu o Homem de Asas?
Ele não voa como um pássaro
Que voa como quem anda no Espaço
Ele Voa como quem Devora o Universo
Como quem busca O Verbo
Como quem Une Versos
Como quem Faz Poesia…
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Ilustração:Hermin Abramovitch |
Ode ao dia
Parece um xequerê frenético
Estremece, sacode, salta aos olhos pro espaço
E sempre cai de volta às mãos azuis-turquesa do tempo
Almas de sorte
Dados errantes na mesa do ocaso
Chacoalham as cores da vida
Que nem miçangas enredadas
Que seja sempre assim:
Estrelas dançantes varando madrugadas
Vibrando canções douradas
Radiografismos
Esqueleto meu que segue reto tua rota
Sombra minha à luz interior
Espelho por dentro dos olhos do mundo
Face da morte nas subestações da infância
Perspectiva concreta do efêmero que sou
Companhia constante
Pelas mucosas dessas ruas passageiras
E nas minhas entranhas
(Vísceras que te moldam
Tão impregnadas de vida e tão estrangeiras
Ao teu pragmático teor inanimado)
Osso duro de ruir
Tijolo, cimento e medo das cátedras e catedrais
Alvenaria do que navega em mim
Lembrança ambulante do porvir herdado
Cala-te em teu riso gélido irônico escancarado
De sepultos antepassados
Ameaça pirata da hora incerta
Qual flâmula prestes a subir o mastro
Ouvida meus miolos teu recheio de neurônios decadentes
Veda teus ocos olhos secos sem íris nem retina
Cerra-me o labirinto do estalar da dança das articulações
(Conserto perene de martelo em bigorna
Ecos certos das engrenagens deste instante)
No compasso do cerebelo
Tão mais breve que teus cabelos
Amacia teus passos
Mas não estanquespor nada
E com tua ausência necessária
Sempre tão perto e tão distante
Segue constante tua marcha claudicante
Ostentando a vida à meia-haste
E abandona como por descaso minha alma errante
Tão leve, em silêncio gritante,
Almejando ânimo em teu rastro
Na alegria da displicência
Como pinto no lixo
Ciscando breve neste festim
Sem peito de aço.
Retrato em P&b
Nas mãos opacas
deste amanhecer ruminado
um vislumbre em p&b,
do alto da colina enrugada,
insiste ao me ver
retido no templo de pedra da infância
na iris verde da lembrança
Entre trevas e luz,
o pincel do tempo retoca,
oxida a prata…
e a moldura que entorta
parece bem mais
com nuvens desgastadas
Rachaduras na paisagem:
raios lentos, de passagem
rasgam o vento
rompem galhos secos
membros rotos estáticos
segredos…
e o ar quente cinzento
varre os sorrisos extáticos
Nem tanto dano assim
no preto e branco se faz
mais amarelecida a memória
mais vibrante o dia dourado
traquino
de ximbra
que o azul piscina me traz
O início da escalada
na escada de cinco meninos:
Ana, Neném e Nino,
o primo granfino do Rio
e o caçula descalço franzino,
sem blusa, sem medo, sem tino
ensaia o destino tão áspero
deste frio leito vazio
mais desbotado
que o chão
de pedras de fogo,
de espinhos…
Fotos de Júlio: Ricardo Prado
Júlio Lucas: nascido na cidade de Paulo Afonso no norte do sertão baiano e radicado há quase duas décadas em Jequié (Sudoeste da Bahia), Júlio Lucas é filho de pernambucanos. Participa com frequência de eventos literários como festas, feiras, bienais e encontros. Autor de “Novamente Poesia”, lançado na 10ª Bienal do Livro da Bahia, teve oportunidade de mostrar, em 2017, um pouco mais do seu poemáriona primeira edição da Flipelôno Café Teatro Zélia Gattai. Na capital baiana, onde trabalhou na TV com o cineasta e jornalista Álvaro Guimarães, em meados da década de 90, vivenciou o cenário cultural dos anos 80, produzindo e participando em fanzines e bandas alternativas. Trabalhou em sua cidade natal nos segmentos publicitário e de eventos e foi um dos idealizadores do Bando Batida Seca, grupo musical que se tornaria porta estandarte da cena conhecida na região como o Novo Cangaço Cult. Efetivo da Secretaria Municipal de Cultura e Turismo de Jequié, é responsável pela Biblioteca do Museu Histórico, produz eventos literários e preside atualmente a ALJ – Academia de Letras de Jequié. Na comunicação, dirigiu os jornais Actual e Correio do Interior, roteiriza vídeos institucionais e é coordenador editorial da Revista Muito Mais. Também é conhecido por comandar o Tribos do Rock, programa semanal que volta ao ar pela 105 FM depois de um hiato de sete anos.Júlio Lucas possui trabalhos poéticos publicados em coletâneas, jornais e revistas, além de romance, contos e uma peça teatral ainda inéditos. Recentemente o núcleo em Jequié da Neojiba (Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia), musicou um poema da sua autoria em homenagem aos festejos juninos da cidade. Pretende lançar seu segundo livro, “Radiografismos e outros poemas de vida e morte”, no segundo semestre de 2018.
Respostas de 3
Essa amostragem composta de cinco poemas de Júlio Lucas, cangaceiro cult, confirmam a maturidade da sua escrita. O menino 'caçula, descalço franzino', cumpre 'o destino tão áspero' de arder sentindo a chama terrível e sagrada da poesia. O menino caçula agora já carrega 50 brasas na sua cuia vazia. Parabéns pelo seu cinquentenário, imortal pistoleiro! Abraços.
Obrigado, Zé, por sua generosidade. Pois é… meio século de traquinagens neste xequerê gigante. Nesse brinquedo efêmero chamado Vida. Nessa guerrilha lírica polinizando versos na secura do dia a dia.
Agradeço a Jandira Zanchi, também, por essa oportunidade de publicar alguns dos meus poemas em seu blog. Belo espaço dedicado à Poesia e cia. Muitos talentos por aqui. Aprendi o caminho e desde já passo a ser mais um visitante assíduo.
Parabéns pela poesia, amigo, será sempre bem vindo em Amaité não só como visitante, mas, como autor.