parto
do meu silêncio brotam nuvens
relva e acertos
o meu delírio pare corvos
e medo
o meu deleite corrói o tempo
salva penugens de asa dentro
do meu desejo
sobram delícias de versos e pelos
do meu corpo brotam flores
e esse resto de cheiro
subtendido
espia o gato que ronrona.
a exata geografia do espaço
em que ele se aninha
entre o livro e o teu braço.
a exata geografia do espaço
em que ele se aninha
entre o livro e o teu braço.
espia o brado que se expande.
inquieto
sub-reptício.
percorre vielas e becos
ronda o asfalto
e guarda a fuligem intacta.
inquieto
sub-reptício.
percorre vielas e becos
ronda o asfalto
e guarda a fuligem intacta.
espia os javalis de sobreaviso.
hienas descompostas
preparam o último riso.
eles esperam
e passam.
hienas descompostas
preparam o último riso.
eles esperam
e passam.
posição
os derradeiros
estarão ao lado do “pai”
serão os primeiros
ganharão o paraíso
dizem eles
dizem vocês
digo eu
dizem nossas/nossos ancestrais.
enquanto pousamos o livro sagrado sobre a mesa
sobre o colo
entre os braços
ante nossos olhos.
serão as últimas
as primeiras?
as meninas, as mulheres
estarão no colo do senhor?
[dos senhores, dos tios
do conhecido vizinho
do avô]
Estarão curadas
de toda sevícia, malogro
estarão curadas
de toda dor?
os derradeiros
meninos pretos
sorrirão felizes
terão saradas
toda espécie
de cicatrizes
exultarão, enfim?
serão eles, os primeiros?
a menina que não é menina?
o menino que não é menino?
usarão enfim
[sem medo]
o banheiro?
as periferias
as vielas
os becos
reluzirão solenemente?
ofuscarão os condomínios
os clubes
as afrontosas avenidas
benzidas pelo asfalto fino?
as ofertadas varas pra pescar
produzirão os peixes?
frangalhos
ó linda flor despedaçada
quando te roubaram os ramos
quando trituradas, foram as tuas folhas
a tua corola
quando te roubaram a fala
te cuspiram no rosto
quando te roubaram todo o ar?
ó linda flor em tenra idade
quando te delegaram
a labuta de ser mulher
de carregar a sina
do vilipêndio, da labuta
quando te aviltaram o sono
o sonho, a brincadeira com as bonecas?
linda flor
quando te arrancaram do colo
para a sarjeta
quando te roubaram a proteção
o aconchego
quando te amordaçaram
sujaram de sangue teus lençóis
quando te ensinaram o pesadelo?
sobre como se dá
um desafio constante
era romper as auroras.
entreabrir os cílios das manhãs
quando, na alma
ainda pulsa a noite sombria.
o desafio constante
é preparar o levante.
dimensionar as lutas
quando o corpo pede
descanso e paz.
um desafio constante
era plantar as flores
quando a aridez dos dias
convidava apenas
para imensidão de desertos.
o desafio constante
é manter a coluna ereta.
a fronte impávida
diante dos cabrestos
que tentam nos impingir.
o desafio constante
é ser.
: lúcido
: feliz
: humano.
Ilustrações: Leonor Fini
Lia Sena é escritora baiana, graduada em Letras pela Uefs, tem quatro livros do gênero poesia publicados, participação em várias Antologias e Revistas eletrônicas. De vez em quando escreve contos e crônicas. Recebeu o prêmio Sosígenes Costa de Poesia em 2018 e o livro premiado, Na Veia da Palavra, será lançado pela Editus (Editora da Uesc). Publicou recentemente o Romance, depois o Amor. Integrante do Mulherio das Letras e Articuladora do Mulherio das Letras da Bahia, organizou, participou com poemas e lançou recentemente, a II Antologia do Mulherio das Letras – Bahia, Tabuleiro de Poesia.
Respostas de 3
Muito obrigada. Abraços!
Grata eu, Lia!
"O desafio constante é ser ereta e lúcida…" Que ótimo!