Joana
mesmo que eu quisesse (e, acreditem,
um dia eu quis), não poderia
ser só joão ou contentar-me
com a impura ana.
ana traficava entorpecentes
no peito e mantinha a britânica
cabeça lúcida. joão,
franzino, media a espessura
das vidas pela sua ausência.
artista de um poema sem vírgulas,
ela fingia um verso frouxo,
e ele via o horizonte pelo
seu avesso, seu oco: insosso.
certo dia, os dois se meteram
numa fresta de minha estante e
geraram, sem que eu percebesse,
errante, simétrica, joana.
(In: Menos teu nome, 2016)
Malone morre
Tudo algum dia vai estar bem morto.
E depois? Depois nada. O que veio antes –
se foi quarto de hospício ou de hospital,
centro espírita, igreja – não importa:
o tempo sempre esmaga tudo (dizem
os tolos que no fim ele até cura)
quando passa, imponente, pelas ruas
da memória, ou por concreta avenida;
o passado só volta demolido
como um monte de cacos empilhados
com um contorno algo inverossímil;
e a história recalcitra recalcada.
Vida e livro só deixam a falida
crônica de uma morte anunciada.
(In: Menos teu nome, 2016)
Enxaqueca
Você deve entender, meu amor, que a
enxaqueca é uma dor constante que age
como que corroendo os ossos da alma;
não se distrai nem se alivia: ama,
como a dor em silêncio, o leito escuro,
mas em focos de luz se refestela,
na cabeça pesada, como agulhas
que se fazem lâminas de tortura
física e metafórica, pois se elas
passeiam sobre os olhos, resolutas,
roubam não só o espírito de um dia
útil, que então se perde em letargia,
como deixam na mente a massa turva
que, de tudo, subtrai nossa leitura.
(In: Mais nada, 2021)
a morte à meia luz
a morte à meia luz
sentida contradiz
(reclusa até o fim
do assunto no capuz);
me nega tudo e, assim,
não assume que ficou,
na noite que passou,
de bruços no capim;
deitou foice e nariz
na grama fria e nem
virou e nem gemeu –
a morte enfim se deu.
mas não sei bem a quem,
súbito então me diz.
(In: Mais nada, 2021)
carnaval
o dia pedia – e eu não recusei
desci de novo às ruas, dessa vez
de escada ou elevador, não lembro.
moto-contínuo empesteei a calçada
com meu melhor perfume francês.
irônica, caruda, liberada
abanava conselhos, cortava olhares
com a coragem soberba dos bêbados
ou estupidez de adolescente
deixei que me levasse o toque do pandeiro
e decididamente dei bandeira
travestida, linda, de pierrot
histérica e erótica pierrette
debaixo do sol que a noite anoitece.
(In: Mais nada, 2021)
Ilustrações: Luis Dourdil
Lucas dos Passos, natural de Vila Velha e radicado em Vitória (ES), publicou os livros de poemas Menos teu nome (Cousa, 2016) e Mais nada (Patuá, 2021). Dedicado ao estudo dos ritmos da poesia brasileira contemporânea, desenvolve pesquisas sobre o tema no Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes), onde atua, como professor de Língua Latina e Literatura, desde 2012.
Contato: lucasdospassos@hotmail.com