À flor da vista
I
Seus olhos estáticos
dependurados no tempo.
Transe paralelo à procura
de um ponto infinito.
Ver pela primeira vez
a escritura da natureza
no hiato do invisível.
A contemplação das coisas
que realmente existem.
Fagulha do desconhecido.
Dúvida imensa que nada espelha.
Mas que se reconhece constante
como a sombra da manhã
atravessando a porta.
II
Trama poética que enreda o mundo
na leitura sempre imprecisa.
Seus olhos locupletam
acima do mistério
o poema impenetrável.
Escultura versada
pelo sopro ancestral do barro.
Do cheiro de terra molhada.
Da beleza revelada pela paisagem
que habita o escuro.
A infinitude é apenas uma ideia
A procura inconformada
de um instante perdido
ou do nada que restou
numa gaveta vazia.
O futuro despreocupa-se.
Apenas o presente importa
dia após dia passando devagar
enquanto o mundo se despe lá fora.
Meus passos vestiram sua distância.
Há uma voz que não deixa mudo
o tom surtado, quase exasperante,
da partícula “se”.
Se eu virar o volante subitamente
e tomar novo rumo?
Se pular desse edifício
em seu colo metafórico?
Se eu apenas tomasse um porre
ou dourasse a pílula?
Se ela deixasse de ser
minha musa venal
e eu findasse o poema
sem verso-remate?
Se afônicas reticências
fossem a síntese do fim?
à sombra dos ciclos
vultos à volta
movem-se lentamente
feito lembranças
de um tempo ardiloso
o espelho prende à parede
translúcida realidade –
anverso das manchas de aço
no impressionismo da face
em vestes esvoaçantes
(à moda dinâmica dos fantasmas)
cortinas balançam o vento
revolvem poeira
sobre o soalho de pedra
que atravessa corredores
da casa ancestral
estiagem que anuncia
finitude de estações
nesse acúmulo de setembros
A vida se apressa para a noite
Na derrocada das chuvas
a dama-da-noite espalha em silêncio
seu branco perfume.
Aguarda o prematuro outono
enquanto respira a madrugada
das alamedas solitárias
onde edifícios se erguem
e tombam.
Em seus rastros, o espaço
e velhas pedras para novas construções.
Velhos jardins para novas damas
(terra convertida em carne e osso.)
Há um tempo para viver e desejar
e um tempo para o vento
sacudir folhas, flores
e carregar para além das esquinas
a luz perfumada que se declina
nas sombras da tarde.
algum pedaço de terra
ao poema
não se intenciona o ouro
mas a terra lavrada
cordão de sementes
que veste o corpo
e mede o caminho
do pó ao barro –
grifo memorial
das impressões de início
escrever não é escolha
é viver condenado
às imagens do espelho
(altivez do verbo
gravidade estrita
que não atravessa a noite)
à margem do desfecho
não há encanto possível
apenas a salvação do plantio
(há que se bastar).
Ilustrações: Arnold Böcklin
SIDNEI OLIVIO – biólogo e poeta. Autor de 11 livros de poesia e prosa poética, além da participação em 23 coletâneas, sendo os principais Leituras de Brasil, 2001, Ed. da UNESP e Petali d’Infinito, Accademia Internazionale Il Convivio, Itália, 2002 e Mapa Cultural Paulista, Lisboa, Portugal, 2002. Vencedor de vários prêmios literários. Tem publicados ebooks de poesia infantil em português e inglês. Publicações ainda em várias revistas e jornais literários e científicos (zoopoesia).
Uma resposta
Muito bom! Anos atrás eu tive um livro dele.