Panorâmica
Sobre o mar
de leste a oeste
uma meia lua de nuvens
do tamanho do horizonte
pesava acinzentada
comprimindo o pôr do sol
tão apertado
que ele escapulia em clarões alaranjados
sob as nuvens
eu comprimia em minhas mãos
um punhado de areia,
tão apertado
que o próprio tempo geológico
se derramava por entre meus dedos
viva estou
que isso me baste
—————
chove
me desperto e voo até a janela
empoleiro o desgosto.
penso em ciscar nas nuvens carregadas de noite
alguma resposta,
mas é dia e cismo.
cacarejo baixinho gymnopédies e gnossienes,
revolteiam vírus entre fragmentos
de subprodutos orgânicos nas correntes
desses riachos intermitentes
que avisto sobre o asfalto.
boto lágrimas
– ovos infecundados.
(se eu tentasse chocá-las
alguma coisa nasceria?)
chove
sacudo penas.
são elas que observo crescer,
atônita
Espero na fila
com meu corpo mal habitado
estou na fila e não estou
as alpercatas da avó eram
eu vou
aquele vagabundo me roubou
a maldita da
quando eu
aquele porta retrato empoeirado
ele ainda me paga
Vago nesse limbo de tempo confuso
porque o presente
é o corpo que dói
Em pé,
minhas varizes,
minha tuberculose,
minha artrite,
ter a dor como posse
Discuto com Deus
e com os extraterrestres na fila
as câmeras de segurança tentam me perseguir
e os celulares brancos
querem controlar minha mente
mas eu tenho o poder de ficar invisível
como agora
Em pé na fila
parece que estou
estou e não estou
Quem me vê?
Vago no limbo do espaço confuso
a esquina,
a rua
o chão
o espaço-tempo capotando
no planeta fome
——–
E não seria destino de todos os relógios
derreterem no deserto?
Em cima de escrivaninhas,
entre as folhas de diários?
Fugir de crocodilos tic tac
enquanto todos sabem
que é preciso pelo menos
duas mãos
para carregar o sentimento do mundo
Ainda assim, coelhos correm
sempre atrasados
para chás de desaniversário,
sem presente
“Money is a gas”
Enquanto isso
uma folha verde nasce
outra amarela morre,
marmitex de isopor se acumulam
aguardando em suspense geológico
e volta e meia
uma lua cheia pinga no olho
Nada,
esse cisco
Porque nem precisa ser
“new car, caviar,
four star daydream”
entre entregas ifood e
filas do osso,
arroz e feijão,
sabe?
Mas “money so they
say”
nas ilhas virgens britânicas do caribe
ou fazendo turismo espacial na mesosfera.
Carbono 14
Foi um brasileiro que te deu o nome,
Luzia
E tu?
Terás tido um?
Se fosses desses tempos,
serias mineira
mas pelas voltas do teu,
que territórios existiam?
Que caras farias tu
se visses as caras que te foram dadas?
Será que tinhas medo do tigre dente de sabre
e do mastodonte?
Será que a preguiça gigante era deus?
Era caso que tu já praticavas o veganismo
ao contrário do teu primo clóvis?
Ah! Luzia,
se tu soubesses que doze mil ano depois
teríamos absorventes descartáveis,
pílulas para cólicas e anticoncepcionais.
Te desenterraram, Luzia
e te fizeram famosa.
Mas que triste, Luzia
morrestes uma segunda vez
num incêndio infame no Rio de Janeiro
a mais de quatrocentos quilômetros
de onde estão os teus.
Luzia, Luzia,
quantos segredos
não testemunharam teus ossos…
Reflexões sobre Willendorf nº1
Uma mulher nua
Não mais está nua
Está vestida de pornografia
Uma mulher nua
Não mais está nua
Mas sob cobertores de olhares
de possessão e ou destruição
Se na guerra do fogo
uma tanga era uma tanga
Hoje é um fio dental sexy
Quando o corset vira fetiche
A opressão é outra
Pode um corpo nu
De mulher
Sob uma luz branca
Ser somente
Um corpo nu
Sob uma luz branca?
Pode um corpo nu
De mulher
Ser
Apenas
Ilustrações: Dorothea Tanning
Lara Dias é natural de Salvador(BA) e radicada em Aracati (CE). É geógrafa, professora, terapeuta reikiana e poeta. Em 2020, no início da pandemia, criou o perfil no instagram @lara.dias.e.dias para tirar seus poemas da gaveta e compartilhá-los com o mundo.
Respostas de 2
Adoro os poemas da Lara. Parabéns por estar nesse espaço poético, querida! Um beijo.
Fui invadido pela fúria desses poemas!