6 poemas de Lara Dias

Panorâmica

 

Sobre o mar

de leste a oeste

uma meia lua de nuvens

do tamanho do horizonte

pesava acinzentada

comprimindo o pôr do sol

tão apertado

que ele escapulia em clarões alaranjados

sob as nuvens

eu comprimia em minhas mãos

um punhado de areia,

tão apertado

que o próprio tempo geológico

se derramava por entre meus dedos

viva estou

que isso me baste

 

—————

 

chove

me desperto e voo até a janela

empoleiro o desgosto.

 

penso em ciscar nas nuvens carregadas de noite

alguma resposta,

mas é dia e cismo.

 

cacarejo baixinho gymnopédies e gnossienes,

revolteiam vírus entre fragmentos

de subprodutos orgânicos nas correntes

desses riachos intermitentes

que avisto sobre o asfalto.

 

boto lágrimas

– ovos infecundados.

 

(se eu tentasse chocá-las

alguma coisa nasceria?)

 

chove

 

sacudo penas.

são elas que observo crescer,

atônita

 

Espero na fila

com meu corpo mal habitado

estou na fila e não estou

as alpercatas da avó eram

eu vou

aquele vagabundo me roubou

a maldita da

quando eu

aquele porta retrato empoeirado

ele ainda me paga

Vago nesse limbo de tempo confuso

porque o presente

é o corpo que dói

Em pé,

minhas varizes,

minha tuberculose,

minha artrite,

ter a dor como posse

Discuto com Deus

e com os extraterrestres na fila

as câmeras de segurança tentam me perseguir

e os celulares brancos

querem controlar minha mente

mas eu tenho o poder de ficar invisível

como agora

Em pé na fila

parece que estou

estou e não estou

Quem me vê?

Vago no limbo do espaço confuso

a esquina,

a rua

o chão

o espaço-tempo capotando

no planeta fome

 

——–

 

E não seria destino de todos os relógios

derreterem no deserto?

Em cima de escrivaninhas,

entre as folhas de diários?

Fugir de crocodilos tic tac

enquanto todos sabem

que é preciso pelo menos

duas mãos

para carregar o sentimento do mundo

Ainda assim, coelhos correm

sempre atrasados

para chás de desaniversário,

sem presente

“Money is a gas”

Enquanto isso

uma folha verde nasce

outra amarela morre,

marmitex de isopor se acumulam

aguardando em suspense geológico

e volta e meia

uma lua cheia pinga no olho

Nada,

esse cisco

Porque nem precisa ser

“new car, caviar,
four star daydream”

entre entregas ifood e

filas do osso,

arroz e feijão,
sabe?

Mas “money so they
say”

nas ilhas virgens britânicas do caribe

ou fazendo turismo espacial na mesosfera.

 

Carbono 14

 

Foi um brasileiro que te deu o nome,

Luzia

E tu?

Terás tido um?

Se fosses desses tempos,

serias mineira

mas pelas voltas do teu,

que territórios existiam?

Que caras farias tu

se visses as caras que te foram dadas?

Será que tinhas medo do tigre dente de sabre

e do mastodonte?

Será que a preguiça gigante era deus?

Era caso que tu já praticavas o veganismo

ao contrário do teu primo clóvis?

Ah! Luzia,

se tu soubesses que doze mil ano depois

teríamos absorventes descartáveis,

pílulas para cólicas e anticoncepcionais.

Te desenterraram, Luzia

e te fizeram famosa.

Mas que triste, Luzia

morrestes uma segunda vez

num incêndio infame no Rio de Janeiro

a mais de quatrocentos quilômetros

de onde estão os teus.

Luzia, Luzia,

quantos segredos

não testemunharam teus ossos…

 

Reflexões sobre Willendorf nº1

 

Uma mulher nua

Não mais está nua

Está vestida de pornografia

 

Uma mulher nua

Não mais está nua

Mas sob cobertores de olhares

de possessão e ou destruição

 

Se na guerra do fogo

uma tanga era uma tanga

Hoje é um fio dental sexy

 

Quando o corset vira fetiche

A opressão é outra

 

Pode um corpo nu

De mulher

Sob uma luz branca

Ser somente

Um corpo nu

Sob uma luz branca?

Pode um corpo nu

De mulher

Ser

Apenas

 

Ilustrações: Dorothea Tanning

 

 

Lara Dias é natural de Salvador(BA) e radicada em Aracati (CE). É geógrafa, professora, terapeuta reikiana e poeta. Em 2020, no início da pandemia, criou o perfil no instagram @lara.dias.e.dias para tirar seus poemas da gaveta e compartilhá-los com o mundo.

Respostas de 2

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *