6 poemas de Luciane Lopes

Oração de poeta
encher as mãos de vento
depois soprar o vento
como se fosse imensidão
encher as mãos de azul
depois esfregar os olhos
como se fosse derramar
o céu pela face
encher as mãos de pele
e com outras peles amansar
o cansaço das mãos
encher os olhos e os copos
como se matasse a sede
dos outros
encher os outros de ouvidos
e deixar as palavras descansarem
no palato morno da gratidão
encher o colo de humanos castigados
e beber com eles a fragilidade dos anos
e comer com eles a ruptura das cascas
e subir com eles na crendice das árvores
e sonhar com eles na certeza da dúvida
Proteção
eu quero uma capa
de chuva ou de aço
que me proteja dos
anos, dos pratos quebrados
que me proteja da dor dos mortos
da tristeza dos calados
eu quero uma saga
de veludo ou de aço
que me proteja dos dias
vazios, dos sacos de lixo
das ruas entorpecidas
eu quero um lugar pra dormir
esse desassossego que me chama
e levantar com aquela paz que eu
carregava dos meus 20 anos
eu quero um fracasso com nome
de refrigerante, uma bebida xamânica
que me atrapalhe os planos
eu quero um telhado,
um país, um continente
eu quero rir dessa gente que ri
da minha cara
e esfregar meu nariz na terra úmida
e lamber os ventos
eu quero uma capa emprestada
 
Uma dúzia de marias
maria tinha medo do vazio
aqueles vazios de saco de pão,
de coisas que a gente pega pra
assoprar quando o tempo demora.
maria tinha aversão por vazio
aqueles vazios de carcaça de frango
depois que todos já se lambuzaram
e ficam com cheiro mole de saciedade.
maria tinha pena de gente vazia
tipo letras em caixa alta, jarras de
supermercado, carretos sem mudança.
maria gostava da fartura das pessoas
dos sorrisos, das frutas gordas, das gestantes.
maria quase entendeu que o vazio é algo
que se vela, mas ela foi embora antes.
nasceu exacerbada
Poesia de guardar domingos
dentro do domingo
tem um dormindo
o outro fatigado
tem mesa arrumada
macarronada e mãe
dentro do domingo
tem lichia num outro
estado de sítio
tem sorvete de litígio
e a liturgia dos que
sobraram sem ficar
dentro do domingo
tem o absorto sentido
do cinza cru que me olha
tem a manta e a orla do
mar que me leva Iemanjá
Pai
meu pai deixou
uma carteira cheia
de impressões digitais
deixou seu dedos caídos
na varanda
assim como a nuca
a glote, o apelido
oesfíncter
a vida, os netos
[essas coisas de entranhas]
meu pai deixou
seu quarto tão vazio
e uma cadeira tão macia
que deitei no seu colo
enquanto dissecavam sua
póstuma vida de homem bom
Era pra falar das flores?
em comum acordo
perdi a cor dos lábios
-fiz pacto de cera-
e remontei minha
carne
(na tua história)
ilumino um cigarro
e entre um e outro
-esmo de esmola-
fumaça em espasmo
trinco o que era
bonito
(espelho de retrato aflito)
nem meu olho
esparrama azul
(contido)
nem cortina
nem me arrumo
-recolho a retina-
dor viva é moldura
pintura que desatina
Soluto é o mesmo
ela não era
só a vulva e os
olhos
como se fosse
fácil sentir pena
do que era
maior dentro dela
insignificante
perfurá-la por alguns
anos de alegria
[a vulva e os olhos]
e lá vem ela com o
vento
toda deformada de amor
interessante observar
o que não era só

Ilustrações: Martina Skrobot

Luciane Lopes é poeta e letrista, nascida em Mirassol, interior de São Paulo, 47. Intimista, simbiótica, sinestésica, raramente passa um dia sem escrever algum  poema e os minimalistas ganharam força e espaço na sua escrita. Desde menina escrevia como se os dedos tivessem vontade própria e isso se tornou mais intenso, quando perdeu seu pai em 2006. A forma trágica da mortefez com que ela se tornasse uma “amoladora” de palavras. A poesia veio de forma visceral. Passou a utilizar sítios virtuais, como o Recanto da Letras e se surpreendeu com a receptividade dos leitores e o acolhimento dos escritores.Em 2008 ingressou no Clube Caiubi de Compositores online e colocou diversas poesias para apreciação dos compositores. A resposta foi imediata e feliz. Mais de 100 canções foram compostas neste período. Diversas foram classificadas nos principais Festivais do Brasil. Destaque para canção “Indizível” composta em parceria com a cantora Amanda Barros e premiada no ano de 2009 em primeiro lugar no 5 FEM da cidade de São José do Rio Preto. Ano a ano dedicou-se a aprimorar sua poesia e também a se descobrir através dela e o resultado desta trajetória está presente em seu primeiro livro publicado pela Editora Patuá.

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