6 poemas de “No alto da ladeira de pedra” de Carvalho Junior

 
 
 
Pedra de amolar assobio

como uma cutilada,
talho de faca indomesticável,
teu beijo é minha pedra de amolar assobio.



Descobrimentos

já vi de (quase) tudo na vida,
até cobra caninana
dançar coco, dançar cana,
tomando garapa.

já a tua nudez
é sempre um mundo novo
que me desafia a explorar
as fronteiras do desconhecido.



Caçambadas

diariamente,
o mundo despeja,
sobre as camadas da nossa pele,
carradas de indelicadezas.

o abraço de quem me ama
é que me salva, anima
e derrama mucheinhas de suavidade
sobre o barro da alma.



O nariz da minha mãe sangra…

enquanto o político derrocado 
posa de moralista na estação de rádio,
o nariz da minha mãe sangra.

enquanto jogam peteca a cidade e o caos 
nas fendas da ladeira vermelha do sono, 
o nariz da minha mãe sangra.

enquanto o trânsito segue áspero 
e a delicadeza murcha
nas hortas e palavras (dos homens?),
o nariz da minha mãe sangra.

enquanto as filas não diminuem
no número de desrespeito 
e o farmacêutico vende pílulas antiamor,
o nariz da minha mãe sangra.

como se falasse com Deus,
toda vez que me toma nos braços 
e me embala com o curioso cântico
— tingadonga-donga-donga/
tingandanga-danga-danga —
o nariz da minha mãe 
morre o sangue e vive o sonho.



A terceira mão

era um menino
quando vi um homem
desferir dezessete facadas
sobre o abdômen do meu pai.

minha mãe, seminua, corria 
pela Avenida Benjamin Constant
para socorrê-lo.                      

quadros de Chaplin,
um papai noel de brinquedo, 
vaidades despedidas
na subpele do fogo.

UTI, balão de oxigênio… 
meu pai recebeu nova vida.

alguns anos se passam
e dezessete facadas
rasgam outra vez
a pele do meu pai
na forma de uma hérnia.

quando uma lágrima quase
me escorrega o rosto,
numa cama de hospital público,
sobre as mãos unidas de pai e filho,

uma terceira mão se apresenta:

sinto o perfume da barba feita de meu pai
nos pelos e linhas da mão de Deus.



No alto da ladeira de pedra
  
cadeira, óculos, agulha…

no alto da ladeira de pedra,
vô Quirola remenda
as redes de pesca.

enganchos e tarrafas
do tempo, saudade é linha
que me abrange.

não me desprendo do pé
de amêndoa, campo-santo
dos meus ascendentes.

dormem aqui os peixes
nas cabaças, os pés
de puerícia, o balé
das petecas…
todos os meus cavalos
de palha.




Carvalho Junior é uma ideia concebida no coração ascendente de um índio fantasma. É o versicultor caçula da tribo dos Quirola, natural da aldeia de Caxias (MA), 1985. Publicou os livros de poemas Dança dos dísticos (Patuá, 2014) e No alto da ladeira de pedra (Patuá, 2017). Vencedor do Troféu Nauro Machado de Poesia no I Festival Maranhense de Conto e Poesia promovido pela Universidade Estadual do Maranhão. É um dos curadores do sarau/encontro de poesia Na Pele da Palavra e faz parte do coletivo de poetas Academia Fantaxma. Tem poemas publicados em jornais, antologias e revistas literárias nacionais. Mantém a página de poesia QUATETÊ.

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