7 poemas de Elias Ricardo

Foto de Anya Juárez Tenorio

Manhã
 
A lua desceu ao poço
para morrer
na retina cega da água,
 
pelos quintais do mundo
 
os galos cantam, farejando a aurora;
nos telhados, o dia chega
como um incêndio.
 
***
 
 
Mitologia da Tarde
 
O sol abre com foices de sombra
as vísceras da tarde;
 
Faíscam os olhos do felino
no capinzal que arde atrás da casa.
 
O sol é um touro de luz,
Guernica rasgando o jardim
entre laranjas e canários.
 
***
 
 
Un Saison em Zanzibar
(Rimbaud exilado)
 
Cai a noite na cidade sitiada
sobre os pátios secretos
onde a aurora não chega
 
Leões de Rousseau
devoram bailarinas e relógios.
 
Os poetas jogam xadrez
sobre o cadáver de Rimbaud;
Os críticos e as prostitutas
jogam-se das torres dos campanários
 
As horas estão grávidas de poemas
e pequenas chuvas 
são deixadas em caixinhas
pelos cavalos dos poetas passados.
 
A mulher prepara um novo homem
sob o silêncio das estrelas,
e o silêncio é um trem
atravessando as savanas
na madrugada do começo do século.
 
***
 
 
O Peixe
 
Um peixe no asfalto
Morto
O Substantivo
peixe
morto
no asfalto
longe do líquido
na tecitura negra
do asfalto
morto
 
Um peixe de assalto
deslocado
desloca o ar morto
que o envolve
 
Um peixe único
morto
sob o mesmo sol
que o Atlântico banha
 
Um peixe sem nome
morto
os olhos de lantejoula
como se fora carnaval.
 
***
 
 
Corredor de Lâmina
 
O que restará de mim em cada cidade
por onde passei
A lesma das horas passeando
na folha verde
O pássaro visto brilhar
na monocromática tarde
 
O que restará de mim em cada cidade
por onde não passei
mas sonhei, como sonham
as flores no cativeiro
a ferrugem sobre o corpo
metálico da via láctea
 
O que restará de mim no olhar
de quem fica
Que grito preso
na ossatura do tempo
O que vi perdeu-se
no pasto elétrico dos cabelos;
 
A mosca é a véspera da morte.
 
***
 
 
Homero em tarde cinza
(a jornada de Augusto de Campos na pauliceia sertaneja ou Leopold Bloom nos trópicos)
 
A noite tomou o cume das árvores
não resta nenhuma cor
Ele caminha
entre os mandacarus de concreto
da Ítaca paulistana
 
na mão direita a rosa
na esquerda a foice
com que ceifa os adjetivos
e sequestra o barroco
 
haverá a vida um dia,
uma manhã
crescendo nas barbas
do poeta,
como crescem os musgos
nas estátuas;
 
a cidade sequestrou
a galáxia,
que dorme no fundo
do olho de um gato
 
Os fantasmas dos bandeirantes
ocupam o navio de Teseu
na bile negra do Tietê
 
A grande noite industrial
é um imenso e
único órgão de Moloque
moendo a carne dos poemas
 
RiomesmoRio
em que banhado se banha
sendo o mesmo
e nenhum
 
pois sem rosto
é o poeta que
sendo poeta
não o é.
 
***
 
 
Gaza
 
Menos que um cão
um
homem
uma criança,
menos que um pão
 
um míssil
uma coroa de mísseis
 
— a fome prostituta —
 
a lágrima em pó
contida
a dissolver em
chuvas futuras
 
a flor da fome
crescendo
no interior do cão
 
como o poema
na barriga
do poeta
 
escrever
tem com comer,
com chorar
não tem
 
quem a esta hora
em Gaza
morre,
morre como em pó
 
Sob o sol
perfumado
de um míssil.
 
***

Elias Ricardo, 47 anos de idade, poeta, historiador, servidor público, é natural do Rio Grande do Sul, mas radicado há 15 anos na terra de Ferreira Gullar, São Luís do Maranhão. Leitor voraz de Allen Ginsberg, Gregory Corso, Piva, Gullar, Cabral e Haroldo de Campos, sua poesia é influenciada, desde muito cedo, pelas artes plásticas dos pintores do Modernismo e Pós-modernismo, e pela leitura crítica de Antônio Cícero, Otto Maria Carpeaux, Harold Bloom e Roland Barthes. Seu primeiro livro, Maquinaria, é uma resumida coletânea de poemas escritos entre 1999 e 2002, que reflete de alguma forma a busca por uma voz própria e a fuga do lirismo e do confessional.

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