7 poemas de Marcelo Novaes

 
 
Norte


Não há necessidade de ter a linha do
tempo presente quando se olha para
aquelas casas que não estavam. Também
as pessoas não estavam. Essas que, agora,
ao meio fio, fumam em dragas, copos e
colheres.


Que esfregam as gengivas na esperança
de que não mais sangrem.


Que esfregam os olhos, como se isso
pudesse avivá-los para um céu mais puro
ou, quiçá, para algum céu.


E são meninos e meninas, esses todos:
sobrinhos ao relento, filhos da desolação.


Há de se inquirir se é irreparável essa
condição, ou se ainda hão de descer dali.


Se guardam alguma carta, na manga ou na mão
[como alguns dizem que todos guardam], ou se
todas as cartas já eram. E já não é líquido o que
escorre pelo nariz e pelos olhos. E esse pulso largo
e quente, esse pulso viscoso que se olha de longe
e de longe se pressente: esse pulso é febre que rói
fogo e ferrugem.


[Ratos roem ossos na sarjeta].


Naquela esquina, havia uma loja de doces.
Um pouco além, um escritório. Nada de grande
[aqui, nunca houve nada de grande]. E a bússola
ainda aponta para o Norte.


Esses no meio fio poderiam comer um pedaço
de pizza entre engasgos. E se eu quisesse narrar-lhes
a sudorese seria um romance, onde cacos de fatos se
chocariam, sem se estabelecer. [Aqui, nunca houve
nada de grande; a bússola ainda aponta para o Norte].
Se eu quisesse narrar-lhes… um filme sem final ou
ápice – infinita escada vermelha descendo
em espiral.


Não há como fazer qualquer painel intergeracional:
a miséria desses morre ali, filhos e sobrinhos, questão
de semanas ou meses.


E o entendimento se dá por aproximação, pelos
lados, por todos os lados, e por qualquer dos lados.
[Nada de grande: a bússola ainda aponta para o Norte].
Nada que se possa impor por marcante ou excepcional.


Mas há quem defenda versões atomísticas, contra
qualquer suspeita de Inteireza.


Há quem tenha preferências e desdenhe da procura
ou pergunta mais verdadeira: o nome do assassino ou
do golpista sem meias que, na fuga, deixou pistas.
Não pôde deixar de deixá-las. E há quem delas [e,
assim dele], abdique [abdicando dele e deixando
de prendê-lo para deixá-lo livre].


[Hão de inquirir se toda essa condição é
irreparável, ou se ainda hão de descer dali].


Está bem: o entendimento se dá por aproximação.
Não se abre a represa rompendo-lhe o dique para
tomar toda água num só gole. Mas há quem vista
as meias deixadas como pistas para dizer ser
impossível achá-las. O que dizer deste?


Há um nome para isto.


Não precisamos consultar os escritores
– aqueles que fizeram painéis ou murais de
seus países em três gerações. Não precisamos
nem de orgulho pátrio ou de patrimônio literário:
precisamos abrir os olhos para enxergar, nas meias
que se foram, a remela dos que ficaram à beira.


Não há necessidade de se ter a linha do tempo
presente o tempo todo. Basta que saibamos porque
não mais aquela loja de doces, porque não mais o escritório
[porque não mais o mesmo nada de grande], porque aquelas
meias pistas vestidas pelo avesso nesses pés que esbarram
no mesmo


E porque estes sobrinhos do meio fio dali não
saem nem escoltados.


Porque pararam ali. Porque se quedaram, sem cartas.
Por quais abusos, vexames e más cantadas. Por quais
meios sem meios chegaram a tal fim sem fim, ou nada
de grande. Porque estão chagados. Porque demoram
seu leite derramado nas poucas chuvas do futuro,
sem que haja tempo de forjar anticorpos ou
fabricar sua carta eventual a lançar no
mundo.



Gás


Como és forasteiro [não
parente ou amigo], durma
na cama do quarto ao fundo
do quintal.


Não profiras sacrilégio no
caminho, nem te impressiones
com as aparições [flashes de
outras faixas dimensionais].


Quando se anda para ocupar
lugar assim, visita-se bem mais
do que um quarto estranho: a dor
infantil [ferina, funda e primordial]
que escapou ao olhar dos pais e que
ecoa em tudo – o Indizível, o Inominado,
aquilo que nem se ousa clamar, porque
impensável-impossível.


[Porque impossível-impensável].


Que teu sono seja íntimo
e pertinente – passível de
ser escrito a carvão, no dia
seguinte, e com nós todos
dividido.


Descanso longo lindo e eficaz.


Elaboração das vergonhas
e litígios: sonho de gás.


E já não acordarás forasteiro.



Passo


Temos um velho andando.


Alguns dirão: tedioso e enfadonho,
o fenecer de um homem no qual, de raro
em raro, se pode encontrar alguma
cintilação.


Assim é.


Ou antes,


no ângulo detalhado [e detalhado
ângulo] de cada afeto no pequeno
passo, perfeitamente qualificado
no encolhimento


que o ancora e dá sentido
à vida [como vinda-e-ida],


na qualidade terrosa
de um exílio [que quase
finda]


e cujo fundo lhe define
o timbre [não mais o
contorno].



Coda


Suas virtudes não sobrepunham as
calamidades que me trouxe. E ainda
que eu me alimentasse do esterco de
pombas, seria pouco.
Perto de.


O que houve foi prelúdio
sem canto principal. Nem
precisaria ser orfeônico.


Então.


O choro que me trouxe era
maior do que o abalo com a selvageria
do povo. Maior do que o exército do faraó.
Era um choro de dicção bíblica.


E ainda que impossíveis as reversões,
seguimos. Leprosos atravessaram os muros.
Seriam bem vindos.


Fatos escusos arrombaram nossos portões.
Aí já não era mais possível.


Tombaram nosso acampamento.


Tomaram-nos de assalto.


Havia o prelúdio, fatos entrelaçados
e um bando de nuvens carregadas.
Nos separamos.



Pós-Silêncio


Não porque não o veja nem o saiba,
vou decretar sua inexistência. Mais que
prematuro, seria vil e covarde.


Covarde e vil.


Os mais trôpegos [por saber ou
por bebida, tanto faz], já sabem
do que é banal e rotineiro.


Já sabem de Afrodite e de Baal.


Já sabem dos artifícios,
dos ardis e do dinheiro.


Já sabem dos desfechos
dos romances de jornal,
folheados em capítulos.


Não porque não o veja nem o saiba,
vou decretar sua inexistência. Deve
subsistir a todos os arroubos e poemas.


Deve permanecer ainda que eu parta.
Tem de.


Não pode depender de mim.
Nem deve.


Não deve silenciar pós-orgasmo,
sendo assim tão previsível quanto
o balanço monetário dos motéis – aos
sábados, domingos e feriados.


Deve subsistir aos temas
eróticos e às revistas digitais.


Deve ser um silêncio ainda mais silêncio e mais alto.


Tem de calar a boca de tudo isso pra valer a soma de
tanto ruído. Tem de.
Pra fazer valer mais.


Não serei covarde em me calar,
por só intuí-lo. Não poderia sê-lo
e me contentar sendo o que sou,
somente.




Vintage


Hoje iremos conversar
sobre as diagonais do
afeto.


Comprei uma máquina
de cortar o cabelo ainda
mais rente.


O vendedor não quis cortar o preço:
disse que a máquina mais barata não
duraria seis meses.


Sabe, é que na terça [on Tuesday],
eu tenho encontro marcado com uma
gueixa – encontro que eu sinalizo [espero,
conto nos dedos, rebusco e friso] com tinta
fresca e doirada no calendário, desde março
do ano passado.


Veja bem: ela trabalha seus
tons não na simples lógica [binária]
de sins e nãos, mas em sofisticados
algoritmos que levam em conta cada
modulação ou nuance ocorrida no ato.


[Ou em sua preparação].


Por isso essa coisa tardia
[em mim, tão tardia] de cortar
o cabelo, fazer a barba, polir os
olhos, vestir as botas de cano alto,
lustrar as esporas, deixar o testamento
pronto, poupar meus filhos do tempo do
inventário – marcado com tinta doirada e
fresca, antes mesmo da gueixa ter tido
tempo de voltar pra casa.


Ela mora em Kyoto.


Na marcação do tempo e nos meus preparos
[desde março do ano passado – since last March],
tenho levado em conta [além da doçura nipônica],
questões de fuso horário e ciclos de adaptação
de sono e vigor, vigor e sono,


essas questões nevrálgicas de ardências e
ardores, picos de entusiasmo e ritmos circadianos.


Essas questões de júbilo, espasmos e herança.



Sandman


Quando eu encontrei meu pai deitado
no chão, respirando, num primeiro momento
perguntei-me se ele dormia ou chorava em posição
fetal.


Faz-se necessária [e também se faz] a maior
sinceridade: não tive dó ou pena. Se fosse choro
fetal seria fração das mais de dez mil horas que eu
chorara assim, ao longo da vida, por escolha dele:
absoluta e estrita.


Sem qualquer opção.


Ali, ao chão doméstico, absorto como
o pelo ao gato [como um pé de chinelo enfiado
ao roupão, por engano], ele era qual areia dispersa
submersa à noite ao fundo: Sandman – sem idade.


Há um tempo para se colher, mas não quando
não se planta. Há tempo de morrer, ainda que a vida
tenha sido vã e se tenha optado pela palavra Pai ter sido
a Palavra mais terrível que se escolheu ensinar por herança.


Há tempos para viagens longas e para o simples traslado do chão
à cama.


E, talvez, seja bom que se mantenha
esta visão do filho: crua, crítica, sem
gratidão.


Cravada em definitivo.


Isso poupará, ao Homem de Areia,
co-fundido ao Antes e aos Montes,
que se dedique a revisões dolorosas,
sobre si mesmo e sobre o mundo,
enquanto, ao fundo, as águas
marinhas
gritam.


Ilustrações: Cristina Alexandra Andries




Marcelo Novaes: paulistano, nascido em 1961, geração x, um prosador poético que de vez em quando alinha sua prosa como poema. Psicólogo e ensaísta, não publicado em livro. Seus artigos e ensaios clínico-culturais estão publicados na academia.edu. Seus textos literários se encontram pulverizados pela web: revistas digitais, blog (Dardo), facebook. Prosador poético tardio [e pouco tecnológico] começou a escrever na web em dezembro de 2007, tendo feito ao longo desse período cerca de trinta artigos-ensaios e mais de mil poemas, prosas e contos, no conjunto.

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