7 poemas de “O lume e a fábula” de Rosa Maria Mano

O PARTO

 

Havia, na espessura da noite,

um jarro parindo o rio.

E o rio havia tragado

todas as lonjuras, as horas,

o tempo que pilotava um remo.

Havia, na tristeza por amanhecer,

uma muralha de hibiscos-albatrozes,

descobridores de peixes cegos

que contam estórias de sereias.

 

Havia o transbordo em busca do delta.

A alma que comia as próprias raízes,

pássaros desbotados picando as margens.

Famintos, a água e o tempo numa cópula

que fervia antes do sexo, no nascedouro,

onde florescem as primeiras gotas,

o inaugural instante que fermenta o vinho.

 

 

A HEMORRAGIA

 

A palavra fala ao cemitério dos barcos.

Cega e inútil, desdentada e lenta.

Soa estrangeira aos ouvidos das meninas.

Castra o futuro dos meninos.

Onde a palavra que cava sua própria
fenda-esconderijo?

O pulso da Terra acelera serpentes nobres,

aviva as lavas, mescla estrelas e lodo.

Pela palavra, sangram os pulsos em alto mar.

 

Há um corvo em cada ancoradouro

e uma canção de exílio presa ao remo.

Desce a lua tecendo um casulo que guarde os mortos.

E a palavra emudece na esterilidade dos altares.

 

O LUME E A FÁBULA

 

O lume que clareia a fábula

onde falam minha língua

os unicórnios de pescoço dourado,

aquece o rasgo, enfeita a fala.

 

Quisera ser etérea,

além de farta

– esta que é pouca.

Rígida, a nuca por onde corre

a seiva da herança,

e brotam os ipês

e as palavras abertas

ao aparato dos linhos

e das pérolas.

 

 

A FIBRA

 

Inventamos as voltas,

os surtos, os peixes de gelo.

Saímos da ostra antes da completude.

E seguimos, deixando farpas,

arabescos, cítaras cansadas.

Inventamos a vida, subimos escadas

para lugar nenhum,

para tempo algum.

Gastamos o ventre

no exercício do amor,

na fecundidade breve,

nas pálidas palmas

de homens sempre bons.

Sempre maus.

Silenciamos a noite dentro da garganta,

na solidão da lâmina,

da língua, do visgo do orgasmo.

 

Sinto o perfume das flores

famintas de saliva.

Sinto o negrume da fibra

quase rompendo… quase.

Da meninice no espelho,

da morte, toda, por dentro.

Percebo a carne esgarçada,

o sangue fluindo azul e irrompendo

em cardumes desnorteados.

Aguaceiros e secas, ciclos,

vértices, vértebras…

o corte imortal na haste da orquídea…

tudo me suporta na roda da Vida.

Me invadem os cheiros,

os modos, os gozos.

Mordem os gritos, as gemas do sexo.

Me açoitam os dedos de poeta invencível.

 

 

A ALMA

 

Quando eu passar, na verdade, não terei ido.

No coração, no olhar do que nem é nascido,

farei romper da espuma das memórias

que agitam os seios fartos da Mãe Terra,

os alaridos da primavera

nas vidraças e canteiros.

Parte de mim fica – um perfil encurvado

no espírito da Terra,

buscando chuva, bebendo rio.

Fica no vento que somou fôlego e voos.

Na canção de abismos, mantras e mandalas.

No espectro do mar abissal.

No som de flautas que sonham os bambus,

na luz de cada explosão de amor bruto,

purificado pelo lume do desejo

que recria e fermenta a vida dos mortais.

Fico na alma do planeta – adaga e atadura

– encantada, enfeitiçada, ventre interrompido,

ancha e embriagada, girando, giralua

– semeadura de luar sobre o teu cais.

 

 

O BRANCO

 

Assim, em círculos, quis fugir pra Córdoba.

Pra uma tenda num deserto enraivecido,

pra uma cidade Azteca.

Quis morar em Io ou Caronte.

Estar noturna sem tocar a noite.

Corpo estendido, deslizante, desatento.

Quis negar o gosto belicoso

instalado na rudeza, posto à mesa

como leite amargo, corpo do tempo

alimentando a minha boca de embira.

Quis ficar no futuro, derramando um sol

almiscarado – de amor e morte juntos.

 

Um suposto abraço me ergueria,

pequena nas formas, nas asperezas,

expandida em voo, arroio, generosa lágrima.

Lírio não nascido guardando o branco

segredo das trevas.

 

 

O CORPO

 

Eu sou o que me incomoda
no canto criogênico da costela.
Feia e em desespero de ser somente humana.
Alguns demônios suam sob os lençóis.
Senhora de todas as gotas,
mentora dos meus vícios,
respondo à pergunta que me faz a aurora
salivando a madrugada, na ponta dos pés,
descuidada, enrijecida pelo aço da herança.
Deixa eu desesperar, enquanto posso.
Me deixa dançar, que quase findo. Quase.
A língua guarda a goma das marés grossas,
pesadas de sal, piladas no fosso do Atlântico.
Não preciso de salvação,
da pálida face dos recatos.
Me deixa desapascentar, desistir de recuar,
ser improvável, sangrenta onde me fere o desejo,
natural, carnal, absoluta.
Particular, me descobrir tão rasa, tão vulgarmente
corpo em exercício de desdobrar águas.

 

 

Ilustrações: Remedios Varo

     Poemas
do livro em eBook, O LUME E A FÁBULA, Marianas Edições/Amazon, 2020.

https://www.amazon.com.br/lume-f%C3%A1bula-Rosa-Maria-Mano-ebook/dp/B08P1ZPCY5

 

 

 

Rosa Maria Mano é historiadora em formação. Poeta nascida em São Paulo (SP), onde viveu até os quarenta e um anos, com breve intervalo de cinco anos de residência na cidade do Rio de Janeiro (RJ), vivendo hoje à beira-mar, na cidade de Rio das Ostras no Estado do Rio de Janeiro. É autora dos livros Xamã (Litográfica Editora, 1984), Vento na Saia (eBook Kindle, 2015), Manuscritos de Areia (Marianas Edições/Bolsa Nacional do Livro, 2017), Lábios-Mariposa (Singularidade Editora, 2017), Manuscritos de Água (eBook, Táxi Blue Produções, Coleção Prato de Cerejas, 2018), O Lume e a Fábula (eBook, Marianas Edições, 2021) e O Livro dos Fractais (Donizela, 2022). Participação em diversas antologias e coletâneas, entre elas Conexões Atlânticas Brasil-Portugal (In-Finita Editora,Lisboa, 2018) e Mulherio das Letras Portugal, (In-Finita Editora, Lisboa, 2019). Foi autora premiada em 1999 no Concurso de Poesia do SESC Rio de Janeiro pelo poema A Lua Negra, classificado em primeiro lugar na fase municipal (Teresópolis) e em segundo lugar na premiação estadual. No mesmo concurso teve o poema Re(s)cendência classificado em segundo lugar na fase municipal. Foi vencedora do I Concurso de Escrita Criativa da Editora LiberUm em 2016, nas três categorias.

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