QUASE ONTEM
Reduzir o corpo no mormaço
esquecido da dor
é uma coragem sem ossos.
Destroncados pelo vento
antepassado,
os rebentos ensinam
as mãos
na amputação dos escombros.
Os ombros são cruzes
nas crises dos vaga-lumes
esquecidos nos vidros de conserva
da infância.
Um oceano de fronte
reproduz o que foi medo e não podia,
por falta de anestesia
nos braços quebrados
do mar.
Domar nos cantos da maresia
os peixes.
Sempre cantava para os peixes
nas tardes de tempestade.
Os barcos interrompidos
pela alma das sereias.
Eu arriava a dor
em pedaços de água,
e retornava os olhos
para o horizonte.
Quase ontem.
CATÁLOGO DAS ÁGUAS
As horas se entrelaçam
até o amanhecer depois das sombras.
Cores aéreas pressentem de sol as águas,
numa devolução do que acreditar.
Uma implosão de sons no mar
sucede o silêncio das plantas
atlânticas.
Partícula foi a noite
do silêncio todo em que me instalo.
Pacífica de amparo,
protocolo ampolas marítimas de ilhas,
no preclaro catálogo das águas.
E me restauro. Devagar. mínima.
A LÁGRIMA MAGNÉTICA
Planeta-nos a grande lágrima magnética em solos de súplica austera e soluços que não foram acidentais até aqui. Ela perfaz a ponte etérea entre boreal e austral, com borboletas mediúnicas e unicórnios cármicos, nascidos em águas térmicas para alguma esperança, pelas aberturas dos olhos futuros. Mas os lamentos informam a fatura: há varizes nos mapas, altos-relevos de saudade e caos ainda, nos atômicos pulmões que a chuva já não lava, por aqueles córregos e códigos de sublimes emblemas. Prontos. De frente para os arrozais azuis-mentores. As flores nucleares se aninham e se contundem por nós. Salivam em profecia molecular, aos poucos… Épicas calêndulas dormem no armazém provisório do medo. Provisório de tudo. Lavouras setentrionais de pavor e fúria cultivam-nos de fuga. Estamos tão idos dessas guerras, para voltar atrás, para voltar à frente… Estamos tão vindos dessas cruzes, dessas cicatrizes recém-chegadas, desses precipícios fechados para o balanço das eras… que já nem sabemos sobreficar, ou qual o lado menos fundo da lágrima que afoga. E aterra. Se uma guerra é só o ensaio de outra guerra. E um planeta, de outro, e uma onda, de outra onda… Há muito o que desaprender até o mistério. O cansaço ajuda no que não pode.
ABATE
A facilidade em fluir não diminui
o caminho do rio.
Estende a pressa
como quem estende a mão
indefinida ao tempo.
É de fino linho a garça
em seu lapidar de susto.
O silêncio aumenta de peixe
e os amortece das pupilas
às papilas degustativas
dos finais.
DOS RESERVATÓRIOS
Alojo hojes
desde as esfinges preparatórias
dos penedos.
Desde os flúmens minados nas regatas,
quando as cataratas
eram mais longe
que o despenhar da calma.
A espuma ainda espalma
noventa elmos emoldurados
nas quedas. Livres.
De onde estive
tudo se revira e se renova.
Fluido. Prova.
Porque eu liquido
a antiga novena desgovernada,
para o equilíbrio do emblema.
É pela foz da lembrança que se revezam
essas rezas no poema:
raízes resignadas
em reservatórios
de existir.
MADRUGADA
A extensão da luz promete
acervos mais calmos.
Alumbra meus ombros.
Finaliza dezembros cansaços.
Dizem que é vocação
precipitar o sono
por estas pedras na encosta.
Não sei se posso vir
mais,
esse fugir diagnóstico,
sem rotas de
ancoragens.
Os que submergem parecem números:
bumerangues humanos
sem volta.
Escolta de feixes
até a última gaivota
se fechar
nos pequenos olhos,
ainda recentes de viver.
Devotos soltos
– depois de mortos –
na orla.
Corpos à mostra
sem pérolas.
Córneas e pernas devolvidas.
Baixa maré.
Onde sonhos já não se debatem:
flutuam em nova casa
ou esfera.
Quando seremos nosso próximo
lume
onde abraços sejam remos?
Como será a chaga
nos restos das chegadas
nesses terrenos temporários
de estar?
Quando os itinerários
convertidos em sereno
para que nada do que
falte nos falhe?
De que lado nos aguarda
a fonte das advertências
com nossa água rasa,
em cruz lacrada?
Análoga lágrima
depois da ofensa
na madrugada…
resmunga a paz
desabrigada
em pingos
que aspiram
cicatrizes mais sólidas.
Perfaz o furo no peito
das proas.
Medita a mágoa
interditada
na caída da garoa,
essa filha das enchentes,
em crescimento.
Emancipa meus desertos.
Coloca de pé
a fé
desabituada dos relentos.
MEMÓRIA DE DORMIR ONTEM
Numa manhã de anil, com o rio enxaguado nos olhos,ela seguiu. Não sei mais sobre os sabresdeixados no rastro dos átomos.Se fomos hematomas de aço, tão adjuntos da sobrevivência temporal, frente aos sapatos enfiados na boca das noites,nem sei que noites,quando andávamos entre o descalçodos laços entrincheirados e os lençóis apaziguados de sonhos e elos no varal.Martelos castanhos sobre unhas negras. E pregos como alianças. Até o final.Agregados de uma esperança sem porte.Se fomos morada nos pedaços daquela cabana inacabada pelo vento. Não sei se levantamos antes ou durante o monumento das perdas tão sonoras de pedras. Sei que era já uma febre muito pobre de ira. Um retiro de guerra enterrado no peito do primeiro infinito sem certeza. Era o granito atrofiado de destreza, nas profundezas do pós-corpo. Um carpir de lembranças nas redondezas da vida mas não sei de que vida via ou vinha esta paisagem. Ela seguia…com a ancoragem desfeita às pressas. Sem pergaminhos. Seu cabelo e seu caminho… inversos e tão pequenos… o desaceno lento de quem regressa sem nunca ter ido, sem nunca sequer ter tido uma conversa com o medo… sem resistir ao avesso lado de qualquer destino. Azul-destino.
Ilustrações;Alexander/deviantART
Patrícia Claudine Hoffmann nasceu em São Paulo-SP, 1975, mora em Joinville, Santa Catarina, desde 1981. Graduou-se em Letras pela Universidade da Região de Joinville – UNIVILLE, em 2004. É professora efetiva da Rede Estadual de Ensino de SC., onde leciona Língua Portuguesa e Literatura. Autora dos livros de poesia: Água Confessa ( 2001 – Editora Letradágua), Sete Silêncios (2004 – Editora Fundação Cultural de Itajaí), Matadouro Imperfeito (2016 – Ed. Letradágua), Feito Vértebras de Colibris (2017 – Marianas Edições/Bolsa Nacional do Livro) e “O Livro de Isólithus” (E-book. 2018 – Coleção Prato de Cerejas -Ed.E-galáxia).Mantém o blog www.espoliodosol.blogspot.com, as fanpages “Espólio do Sol” e “Matadouro Imperfeito”. Integra antologias e tem poemas publicados em revistas digitais.