7 poemas de Paulo Mielmiczuk


INTRANSIGÊNCIA 

do que enxergam têm tudo.
o pão, o vinho
o ódio

quem sou já não sei
a identidade a liberdade 
angústia do outro
me prendeu
injusto julgamento

sei que sou mais cobra nutrindo-se ratos indigestos
e sei que deles
ratos
me desfaço

e o que pareço?
corpo de alegrias num motor desesperado?

contexto pobre de poeta podre
mas poeta

e ainda notícias
falsas e repletas de pequenas verdades

nessas miudezas      pequeno      me engrandeço
porque o que enxergam é só o que enxergam
e nada mais
e sempre menos

escrevo-te durante a noite, camarada
porque nela me concentro melhor
o sono não vem, a poesia tarda
e o dia está longe de raiar

trago-te, é verdade, cada vez mais notícias do imenso Matadouro
é que sou urubu pairando cabeças degoladas
que em mim jamais perecerão

mas já estou tão esquecido

a História se turvou
neste poema turvo e precário
poema pobre, mas poema

tentemos nos lembrar

e há algum tempo percebo silêncios e nãos
ó silêncios
já tentou ouvir o que dizem os ouvidos dos que ouvem?

faz muito tempo desde a última vez

gostaria de encontrá-lo
sinto saudade da liberdade
convivência alegre que tínhamos

o Matadouro é podre
não como poeta (tem
menos carniça)

mas convoca visitantes
cada vez mais
a Economia gira assim, né?

mas já não sinto prazer em degolas

exausto de tanta gritaria lá fora
tenho atido ao verso
abatido

é Guerra
e tens percebido? não vi tanque, não vi arsenal 
vi o führer trapalhão e as trincheiras no peito

tenho tentado encontrá-lo, mas não encontro
monólogos batem na parede e voltam a mim
estou farto, solilóquios me angustiam

há outro? minha voz tem ecoado

                 ecoado
escoado

e nada cessa a solidão

têm tudo
o pão, o vinho
o ódio

e eu não tenho nada
tudo tão mutilado!

poemas pobres
mas poemas!

até que não exista mais liberdade
para emitir meus urros sós de
sespero

pois: adeus, companheiro
até um dia de resposta

adeus, companheiro
se ainda companheiro

minhas páginas cerradas
cadeado intransponível

dormirei pra atenuar meu sofrimento
mas tentemos nos lembrar
do amor, da conversa, do sentimento

 

HOMONIMICÍDIO

pollockeiam flashes dos moleques nos postinhos

um dois tês
vintium vintidois vintitês
tê um tê dois tê tês


respingam impermeáveis corridas, joelhos ralados e borrados:
a tela se preenche de vivo abstrato

observo
            rio
               absorvo
                           choro

tê quato tê cinco tê seis

 

não ruiu o que lembro e decoro, imperfeita reprodução
esta tela que jamais dispôs de factíveis pigmentos
desbota ainda e ainda:


dei fim ao moleque calado, irritado e comovido

o mundo era outro

                     e o mesmo

                                tamanha ilusão infante

 

pisco

desperto do daydream, curvo na cama

 

mãos sujas? tinta rubra?
cheiro forte e ainda meu:

falsa memória encravada
ferida de eterno sabor alcalino.
  


VERTIGEM 

o   cifrão  enriquece      a     catedral    enriquece   o  demagogo            enriquece
               o nazista   enriquece       o      silêncio     cresce    a   censura
                                            cresce   o   extermínio   cresce   a   milícia   cresce
                       o   ditador   cresce  e    o   povo   se   estapeia      eia!
          o   “camarada” nada faz e  esperneia                eia!
                               a        esperança         adoece o povo        adoece
                                               a         inteligência        adoece       a      paz
                                             adoece o amor adoece e chega um
                        ponto em que     o    ponto   é   tão    turvo
                                       e tão legível que não
                                                                  há absurdo
                                                                        que o basta
                                                                                     cesse
                                                                                          o
                                                                                                          absurdo
                                                                                                                           cresce        

 

MANHÃ

no princípio, trevas sobre as faces do abismo.
céu e terra e luz e verbo
dentre as trincheiras dos olhos cerrados.
tudo ali ardia:
sal marítimo onda de lembranças
espuma colérica agudo ressentir

e então dum beijo amanhecido nas pálpebras doídas
fez-se
d’aquarela rosada ao gradiente laranja
ao azul-celeste mais esbranquiçado

a onda a onda a onda

aonde os olhos ainda
ardidos do mar a perder-se
de vista marejados
gentilmente são
espuma

 

[SEM TÍTULO]

pensam
(se isso ou [
se fosse menino e ouvisse os pássaros
se menino fosse
capaz de ouvi-los e vê-los, sabê-los
dos bicos às penas,
dos timbres às cores e tamanhos
e se
] aquilo fosse mesmo relevante,
o vão estancaria o vão entreaberto
o portal submundo donde abalam e gritam
e soluçam e transitam almas vadias
que do sêmen do sumo do torpor do consumo
rearranjam-se [em
ninhos, abertos de tudo
aguardando
o mastigar da matriarca, as plumas e escumas e
então o farfalhar eufórico e o voo presente
o todo futuro olvidado]
)
enfim, libertam-se.

 

VERMELHO DE METILA (-4,4)

a infância era aquela pilha vazada
num controle remoto perdido
numa sacola num armário amadeirado

fez-se: rubra e doce
de onde parto

e eu, em toda minha loucura, nunca estive
para além da química: o “não-louco” sofre
meus fenômenos, nunca criei realidades
que não fossem realidades que criamos

inventaram-me e minha infância inventei
o controle remoto não a sintoniza,
não percorre canais ou altera o volume.
serve só para arquivar meu registro alcalino

mas de pouco em pouco percebo a forja
e o punhal que utilizo para cavucar minhas feridas
escorre aqueles mesmos novos perfumes:
rubros e doces, da infância
do sangue, rubros, doces e alcalinos
como dizem.


MÚSICA DA BAD

meu compasso é entretempo.
se descompasso o tempo forte,
no surgir da coda encontro alento
e depois de pontes e pontes
sem nenhum sustento
meus diminutos resolutos
desaparecem em corte.

scherzo em sétimo acorde,
canção à espera da cantata.
no derradeiro discorde,
o grito se abafa em melisma:
vida triste, show de fantoche,
harmonia desarmônica:
shuffle de cíclico cataclisma.


Ilustrações : Robby Cavanaugh



Paulo Mielmiczuk (São José dos Campos, 1995) é graduado em Letras e professor da Educação Básica. Começou a voltar sua escrita para a poesia em 2010 e, desde então, iniciou o blog Poética, teve textos publicados em portais independentes, publicou seu primeiro livro, Poética (Multifoco, 2014), de poemas e teatro, iniciou um projeto voltado à divulgação de poemas no perfil @poetica_mielmiczuk, no Instagram, e publicou seu segundo volume de poemas, Naufrágio (Kotter Editorial, 2020). 

www.mielmiczuk.wordpress.com

mielmiczukpaulo@gmail.com




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