7 poemas de Ricardo Miyake

Das esperas
para V.

Nunca tiveste o oco das vontades,
Teu relógio caminha noutro compasso;
Ouves a aranha tecer ao meio-dia
O pano com que velas tuas estrelas.

E em tuas reentrâncias cultivas azuis
Quase negros:lagoas sem fundo
Onde peixes cansados passeiam
E pássaros repousam as asas nuas.

Esperas paciente o que talvez não venha
Nunca, sob a árvore desfolhada
E murcha, sedenta do que sobra

Nas pedras, igreja erguida nas ruínas
Do que jamais houve: fogo olvidado,
Cascalho, tronco despido de musgo. 


Das rapinas
para C.

Rastejas entre os mortos troncos
Tua trilha de muco excretado.
O sangue que sorves, à sorrelfa,
De crânios ocos e bossa estreita,
Escorre de tua boca qual latrina
Onde boiam, olvidados, quem vitimas.

A rapina te define, humana condição
Que aprimoraste no mormaço de tua gruta
Amarfanhada: cultivas ossos e dentes
E as unhas coladas às paredes
Qual os séculos que em ti se enterram –
Corpo murcho, seio seco, cerume, tumba.


De como o romantismo saiu de moda
para V.

Seria assim: enquanto tivesse o dia
Em seus minutos primeiros, tu passarias
Naquela rua de terra onde trocamos
Palavras e toques e fluidos no
Estreito dos bancos do carro,
Tu passarias e nos veríamos amantes
Nos primeiros instantes do dia
Ao sol lançando suas farpas,
Tu e teu odor de mulher nos
Cabelos e roupas, no entorno
De tuas coxas, no escuro de teus seios,
Tu entrarias em meu carro e
Entrarias em minhas entranhas e
Te entraria tanto quanto gritasses
E mais me pedisses e juntos ficássemos.
Mas naquele dia choveu sem nenhuma trégua
E meu carro atolou três quadras antes
E afundaste teus sapatos na lama.


Descombinado

Teu sangue sobre a pele branca,
Dois carros numa rua estreita,
O presente que compraste é maior do que a embalagem,
As cores de tuas roupas jamais combinam,
Teus vizinhos te odeiam ou nem sabem que existes,
Nenhuma das cadeiras em que sentas te aceita,
O programa de tevê de que gostas acabou.

Precisas de uma lógica – que não há;
Precisas de uma certeza – que não vem;
Precisas ordenar o que é fúria
E surdos ruídos insentidos;
Mas, em teus bolsos roídos,
Promessas não cumpridas riem de ti,
E ninguém te encontrará à porta do cinema.

Esquece: o perdão não te cabe,
O amor inexiste e todos têm asco
Dessa complacência a que te habituaste, pueril.
Põe de parte o vaso que estilhaçaste:
Nada vales, pouco contas de importante,
E teus feitos, bem que raros, não te ultrapassarão;
Ao fim, são só palavras – e nada tens nas mãos.


Do que é feita a solidão

No meio da noite os pássaros dormem,
Pensos em fios de teia amarga;
Difícil tempo de equilíbrio,
Apenas gritos e guinchos nas entranhas.

Ninguém falou que o amor existe,
Ninguém calou o que dói lá dentro;
E quem se importa com o que nos devora?
O sal a roer nossas carnes e ossos.

És o que buscas, tronco sem folhas,
Pasto onde as aves vêm morrer;
Teu corpo de visgo venenoso,
Aço que nos invade os ouvidos.

Ninguém falou que o amor não é triste,
Ninguém espera mais que o prato vazio
Na mesa com migalhas de pão dormido.
Ninguém espia pela janela que grita.
Ninguém se importa com tuas veias abertas.


Dos sabores não sabidos
para a Julia

Dia sem nuvens, o vento te acaricia
E te dobra o corpo, tela branca
Refletindo a luz que entra como um grito.
Janela aberta, fendas que escondes
No meio sorriso que, imagino, tu esboças
Delicada, dedos a brincar com as sombras.
Onde estás que de ti vejo apenas
O fugaz de que tu te fazes, o anel
Que tu não deste, cristal claro que trincou?
Nada importa: o dia sopra seu vento frio,
Xícaras e copos prenunciam o calor
Das horas e dias de partilha, quadro
Que se pinta, bocas a trocar segredos,
Líquidos, palavras de múltiplos sabores.


Poema de fim de tarde

Insetos jogam-se contra o vidro,
O sol mastiga automóveis
Vorazes sobre o asfalto feito grude.
Homens passam, mulheres passam,
A ignorância põe riso nas bocas
E nos corações borrados.
(Crer não é possível e tudo te é enfado.)
Então, no calor do fim de tarde,
As palmas tortas olhando o céu,
Os mortos sem lágrimas que mitiguem
A sede que sobeja nas frinchas,
Mãos que se pegam sem prazer,
Só, gemes teu medo, na sombra,
Nas formas que crescem
Tão logo escureces, nos rastros
De teus trôpegos passos, nos restos.


Ilustrações: Maxfield Parrish


Ricardo Miyake nasceu em São Paulo, no ano de 1962, e trabalhou como professor de literatura brasileira no ensino superior. Mestre em Letras (com dissertação sobre a obra de João Antônio),  publicou Livro de Coisas (Com-Arte – 1998). Teve alguns de seus textos publicados em revistas literárias eletrônicas (Paralelos, Germina, entre outros), além de ensaios de crítica em periódicos dispersos.

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