O CONDOR
Eram meus pés a alma do condor
em noite de ardência.
Ensinavam a dançar espumas e corais
e tempestades e um refrão
antigo feito o lobo da alma.
Abrigavam o coração do poema,
empelicavam sua voz,
faziam arder o livro
de betumes e gardênias
– o visgo do perfume
envolvendo o grimório.
Eram meus pés a alma do condor
iluminado e febril,
nu da boca pra fora,
emplumado e fértil
em si mesmo.
Em mim mesma,
o olhar do condor
Iluminava a aurora.
ALVA
Reconecto ao ato
Que causou o unicórnio.
Vivo entre
Paredes brancas,
Piso de transparências.
Música in natura,
Flores de alvura.
Quero estar longe
Das cruzes anônimas.
A misericórdia
Não alcança o óbito
Das falanges entristecidas,
Das gruas enfileiradas.
Parece-me que renasço.
Busco o aço
Dos dentes da Lua
Finco o dia
Na Terra,
Ainda que nua.
LUZ E CARBONO
A arquitetura da fé
que move
a raça,
Transborda
taças,
retrai escudos.
Fé que não se sacia,
não dorme,
Ignora os vivos,
disseca os mortos.
Não sabe
das teias,
dos muros
rompidos.
Da lama
do poço,
ancestral veio.
Dos portos,
do que a mágoa
aborta,
Da moça de branco
algodão
Que habitava
o portal.
Não sabe da ciranda
dos cristais, do carbono,
da luz que se insinua
no breu
e morre na verde hora,
na boca sangrada
da espécie humana.
MÍNIMO-MÚSICA
E dos mamilos da deusa,
o tule vermelho – ofertório.
O mínimo-música, língua de cobre atravessando as veias
feito sangue ancestral.
Bailarina, lua-de-sangue,
em sapatilhas de leite, dança
para o meu demônio predileto.
Espelho, neurônio, vela,
eu te interpreto para além do belo.
Pergaminho das esferas,
soneto pulsando o hálito de deus,
veste meus olhos com a fúria de Marte.
SARS
Fez-se o monturo de ossos
Sob o parapeito
Da Arcádia.
A neblina, adensada
Pelo hausto dos ancestrais,
Sopra cogumelos
E cancros volumosos.
Leitosas catedrais
Espumam urzes e urtigas.
Encrustadas na escarpas
De gesso e cola,
As ossadas sonham vinícolas
E olivares,
Estiradas ao sol da memória.
Uma flor e um espasmo
Brotam do côncavo
Dos olhos.
Semi-Breve
Estava sujo o marfim
Da última vez que o vi
Um corte e as margens
Eram sangue
Onde viviam
O pré-bicho e a larva,
Um deus de olhos vazados
Suportava a obra,
Abria os flancos,
Brancos,
Aquáticos de nada.
Se o caminho perde
Seu próprio percurso
E a fome peca por gula
Nos ladeados ressequidos.
Se o relógio-náufrago
E a bússola perderam
Velas e cursos
Para a criança-minotauro
Que viria redimir o homem,
Se o ponto de partida
Nasce indiferente,
Astroso, mísero entorno
– cego para hora…
O termo, os ossos
Sob a lápide…
Quão indiferentes
Serão os que têm carne?
Quão distantes
O fôlego da prece?
Quanto de cegueira
embrutece
Por trás das cenizas
E das neves?
Clave de Sol
Em debandada,
as pétalas ex-brancas,
as cortinas, os lençóis
postos a quarar.
Anil e sol
expurgando a semana,
o susto, o gosto,
o fantasma exposto
pela transversal fratura
Anônima, reparto
flores de Espanha
e do Cabo
com o espectro
(ínfima fagulha),
rastros sob os meus
na velha casa da Vila.
Ainda sobrevivem
as memórias calosas
sob o sol de extinto maio.
Fervem a esperança
e o zelo em calda
dos sessenta,
as febres e raízes
dos setenta
ao som de solos
em sol.
Ilustrações: Ronald Ong
Rosa Maria Mano: nascida em São Paulo, onde vivi até os quarenta e um anos, com breve intervalo de cinco anos de residência na cidade do Rio de Janeiro, vivendo hoje à beira-mar, na cidade de Rio das Ostras, Rio de Janeiro.
Atividades como escritora: A primeira publicação, em São Paulo, uma coletânea de poemas sob o título Fruto Mulher, do qual participaram Mara Magaña, Maria Elizabeth Cândio, Maitê do Prado, entre outras. Em 1983, Xamã, primeiro livro de poesias, individual. Com capa de Elifas Andreato e prefácio de Antonio Houaiss. Participação na coleção Passe Livre, da Cia. Ed. Nacional, com o título Três Marias e um Cometa. Desta coleção participaram nomes como Pedro Bloch, Helena Silveira, Josué Guimarães, Fausto Wolff, Moacir Scliar, entre outros.
O Gato, Conto , 1998, D.O. Leitura, São Paulo.
Coletânea
Prêmio SESC de Poesia,
2000, Editado pelo SESC, Rio de Janeiro
Vento na
Saia, poesia, 2015, eBook Amazon/Kindle
Manuscritos
de Areia, 2017, poesia,
pela Coleção Marianas, Ed. Marianas Edições/Bolsa Livro, Curitiba
Lábios-Mariposa, poesia, 2017, pela Singularidade Editora,
Curitiba
Coletânea II
Conexões Atlânticas Brasil-Portugal,
poesia, 2018, julho, Lisboa, Portugal, Lisboa
Antologia
Feira do Poeta, Conexão IV, poesia,
2018, Nogue Editora, Curitiba
Antologia
Comemorativa Dia Internacional da Mulher – Mulherio das Letras Portugal, poesia, 2019, In-Finita Ed., Lisboa
O Lume e a
Fábula, poesia, eBook
2021, Ed. Marianas/Amazon
Participações
Premiada no Concurso de Poesia do SESC, Rio de
Janeiro, 1999, tendo A Lua Negra em primeiro lugar na
fase municipal (Teresópolis) e segundo na premiação final, na cidade do Rio de
Janeiro. Ainda, segundo lugar em Teresópolis com Re(s)cendência, no mesmo
concurso.
Vencedora do I
Concurso de Escrita Criativa, nas três categorias, Editora LiberUm, 2016