9 poemas de Cristiane Sobral


NÃO VOU MAIS LAVAR OS PRATOS

Não vou mais lavar os pratos
Nem vou limpar a poeira dos móveis
Sinto muito
Comecei a ler
Abri outro dia um livro e uma semana depois decidi
Não levo mais o lixo para a lixeira
Nem arrumo a bagunça das folhas que caem no quintal
Sinto muito
Depois de ler percebi a estética dos pratos
a estética dos traços, a ética, a estática
Olho minhas mãos quando mudam a página dos livros
Mãos bem mais macias que antes
Sinto que posso começar a ser a todo instante
Sinto. Qualquer coisa
Não vou mais lavar. Nem levar
Seus tapetes para lavar a seco
Tenho os olhos rasos d’água
Sinto muito
Agora que comecei a ler quero entender
O porquê, por quê?
E o porquê
Existem coisas
Eu li, e li, e li
Eu até sorri
E deixei o feijão queimar…
Olha que o feijão sempre demora a ficar pronto
Considere que os tempos agora são outros…
Ah, esqueci de dizer
Não vou mais
Resolvi ficar um tempo comigo
Resolvi ler sobre o que se passa conosco
Você nem me espere
Você nem me chame
Não vou
De tudo o que jamais li, de tudo o que jamais entendi
Você foi o que passou
Passou do limite, passou da medida, passou do alfabeto
Desalfabetizou
Não vou mais lavar as coisas e encobrir a verdadeira sujeira
Nem limpar a poeira e espalhar o pó daqui para lá e de lá para cá
Desinfetarei as minhas mãos e não tocarei suas partes móveis
Não tocarei no álcool
Depois de tantos anos alfabetizada
Aprendi a ler
Depois de tanto tempo juntos
Aprendi a separar

Meu tênis do seu sapato
Minha gaveta das suas gravatas
Meu perfume do seu cheiro
Minha tela da sua moldura
Sendo assim, não lavo mais nada
E olho a sujeira no fundo do copo

Sempre chega o momento
De sacudir, de investir, de traduzir
Não lavo mais pratos
Li a assinatura da minha lei áurea escrita em negro maiúsculo
Em letras tamanho 18, espaço duplo
Aboli

Não lavo mais os pratos
Quero travessas de prata
Cozinhas de luxo
E jóias de ouro
Legítimas

Está decretada a lei áurea


SONHO DE CONSUMO

Se você me quiser vai ser com o cabelo trançado
Resposta na ponta da língua
Teste de HIV na mão.
Se você me quiser desligue a televisão
Leia filosofia e decore o Kama-Sutra.
Muito bem!

Se você me quiser esteja em casa,
Retorne as ligações, e traga flores.
Não venha com teorias sobre ereção
Ou centímetros a mais.

Nem sempre vou querer sexo.
Nem sempre vou dizer tudo, ou acender a luz.
Posso usar ternos ou aventais.
Qual a diferença?
As noites serão sempre intensas à luz de velas.

Se você realmente me quiser,
Ouse digerir a contradição.
Ajude-me a ser uma mulher,
Diante de um homem.

Quem disse que seria fácil?


PIXAIM ELÉTRICO

Naquele dia
Meu pixaim elétrico gritava alto
Provocava sem alisar ninguém.
Meu cabelo estava cheio de si

Naquele dia
Preparei a carapinha para enfrentar
a monotonia da paisagem da estrada
Soltei os grampos e segui
de cara pro vento, bem desaforada…
Sem esconder volumes nem negar raízes.

Pura filosofia
Meu cabelo escuro, crespo, alto e grave…
Quase um caso de polícia
Em meio à pasmaceira da cidade
Incomodou identidades e pariu novas cabeças

Abaixo a demagogia
Soltei as amarras e recusei qualquer relaxante
Assumi as minhas raízes
Ainda que brincasse com alguns matizes
Confrontando o meu pixaim elétrico
 Com as cores pálidas do dia


PETARDO 

Escrevi aquela estória escura sim
Soltei meu grito crioulo sem medo
pra você saber
Faço questão de ser negra nessa cidade descolorida
doa a quem doer
Faço questão de empinar meu cabelo cheio de poder
Encresparei sempre
em meio a esta noite embriagada de trejeitos brancos e fúteis

Escrevi aquele conto negro bem sóbria
Pra você perceber de uma vez por todas
Entre a minha pele e o papel que embrulha os seus cadernos
Não há comparação parda cabível
Há um oceano,
O mesmo mar cemitério que abriga os meus antepassados
Assassinados
Por essa mesma escravidão que ainda nos oprime

Escrevi
Escrevo
Escreverei
Com letras garrafais vermelho vivo
pra você lembrar que jorrou muito sangue.



BRISA

É preciso resgatar
Das mulheres a delicadeza
A flor mais preciosa
E perfumada
Transformar em suave canto
O grito grudado na garganta
O anseio inesperado
A fúria desmedida
Nas águas repousar o corpo
E entregar os caminhos.


A MÃO E A LUVA

Eu hoje comi um poema com pão
Seco
Ontem não fiz nenhuma refeição
Amanhã talvez uma sopa de letrinhas
Há dias que não brota poema algum
Acordo e mantenho o jejum
Até que anoiteça
Mas as palavras um dia brotam
Como água dos rios
Como chuva
Há poemas que caem
Há poemas que cabem
Como uma luva
E alimentam a alma.


RETINA NEGRA

Sou preta fujona
Recuso diariamente o espelho
Que tenta me massacrar por dentro
Que tenta me iludir com mentiras brancas
Que tenta me descolorir com os seus feixes de luz

Sou preta fujona
Preparada para enfrentar o sistema
Empino o black sem problema
Invado a cena

Sou preta fujona
Defendo um escurecimento necessário
Tiro qualquer racista do armário
Enfio o pé na porta e entro


O TEMPO

O tempo
 é uma entidade
que carrego comigo
O tempo e seus cordões
Estão enrolados em mim desde o umbigo
Ele tem como seu oposto complementar
O espaço entre o tempo e suas escolhas
O tempo, senhor dos horários
Reina soberano
Tênue, em um fio de prata
O tempo a gente não mata
É ele o matador.


PROPAGANDA ENGANOSA

Na primeira vez em que beijei
Foram as minhas amigas que beijaram
Elas inventaram um gosto, um jeito, um cheiro
Meus lábios não estavam

Na primeira vez em que beijei
O príncipe foi escolhido pelas garotas sonhadoras
Pra mim era um tolo
Um sapo, um dragão que em mim cuspiu o seu fogo

Não sei como foi
Não viram os meus olhos cerrados
Eu não estava lá.




Cristiane Sobral é escritora e atriz. Nasceu no Rio de Janeiro e vive em Brasília. É Mestre em Teatro e ganhadora do Prêmio FAC 2017 Culturas Afro-Brasileiras. Imortal cadeira 34 da Academia de Letras do Brasil ALB seção DF e Diretora de gestão cultural no Sindicato dos Escritores.
Professora de teatro na SEDF, foi Coordenadora de Modernização DAS 101.3 na Fundação Cultural Palmares/Ministério da Cultura (2013-2015). Trabalhou na Embaixada de Angola no Brasil (doze anos) com projetos e pesquisas sobre a cultura negra. Foi Coordenadora de Artes Cênicas e professora de teatro na Faculdade Dulcina de Moraes (seis anos), na Faculdade Anhanguera e UnB (Dois anos).
Na carreira artística há mais de 20 anos, tem atuado em cinema, publicidade e teatro. Já foi dirigida por diretores renomados. Dirigiu por mais de quinze anos a Cia de Arte Negra Cabeça Feita. Como escritora tem várias obras publicadas em prosa e poesia com destaque para Não vou mais lavar os pratos, 3. Ed. poesia. Brasília, 2017.
Teatro – Espetáculos mais recentes
2019 – Esperando Zumbi – Prêmio FUNARTE publicação dramaturgia e Prêmio 1º lugar júri Oficial no Festival de Teatro FFF Frente Feminina
2019 – Uma boneca no lixo, temporada de vinte anos do espetáculo com direção de Hugo Rodas;
2018 – Alisantes Anônimos – 2018; Jornada literária do DF;
2018 – Esperando Zumbi; Selecionado para o Festival de Teatro Melanina Acentuada em Salvador; Dramaturgia vencedora de um concurso para publicação de teatros teatrais de autores negros pela FUNARTe-DF em 2019;
2017 – Não vou mais lavar os pratos – performance poética; 
Obra Individual
Uma boneca no lixo, teatro, Ed. Aquilombô, BH, 2018.
Terra Negra, poesia, Ed. Malê, RJ,  2017.
O Tapete Voador, contos, 2. Ed. Malê, RJ,  2017.
Só por hoje vou deixar o meu cabelo em paz , poesia, Ed. Teixeira, BSB 2014.
Espelhos, miradouros, dialéticas da percepção. Contos. Dulcina Editora, Brasília, 2011.
Não Vou Mais Lavar os Pratos, poesia. Dulcina Editora. 2ª Ed. 2011. Brasília. 
Não Vou Mais Lavar os Pratos, poesia. Coleção Oi Poema. FAC. Ed. Athalaia.  (DF), 2010;
Não ficção
Teatros negros: estéticas na cena teatral brasileira, Ed. Mi Pariô Revolução, 2018, SP.
Coautoria
Tainá, a guardiã das flores, literatura para a infância, em co-autoria com Ayana Sobral, Ilustrações NeMaria, BSB, 2018.
Cinema – Curtas – atuação como atriz:
“Um segundo”, Silvania Mendez (2016);
“O tiro”, de João Inácio, (2015);
“As Luzes de Benjela”, de João Inácio (2014);
“Descontentes”, Marcelo Prateano (2013);
 “As coisas acontecem”, de Denílson Félix, (2009);
“Fuga para Palmares”, de Rodrigo Alex, (Animação 2008);
“A Dança da Espera”, de André Carvalheira (2000);
Peças publicitárias
Apresentadora do Programa Bolsa Família, do Ministério do Desenvolvimento Social
Apresentadora de um programa televisivo para o Ministério do Turismo, intitulado “Tradições Brasil”
Apresentadora Programa ONU: “Dar voz às mulheres: Violência contra as Mulheres no Cone Sul”
Programa televisivo do PT em 2002, que apresentou o programa de Geraldo Magela para Governador do DF,
Atriz no produto publicitário “Prospera” BRB;
Atriz no curta “A Formação e a carreira do Diplomata” – MRE;

 

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