alma de passarinho
na soleira da minha janela tinha sempre um passarinho
ele ficava ali me olhando acordar
como quem pedisse umas migalhinhas de pão
eu me via tanto naquele passarinho
que quando eu debruçava na janela eu cantarolava baixinho
aprendi ali que minha alma também pedia migalhas
desentupidor
o ralo do banheiro sempre foi um problema
a mãe desentupia
mas o ralo ainda era problema
nem o encanador deu jeito
até que veio o doutor e levou minha irmã embora
o ralo sofria de bulimia
cárcere
lá em casa
cadeira não tinha perna
todas as cadeiras lá em casa
tinham grades
a gente se aprisionava embaixo delas
quando a bebida atravessava a porta
lugar de criança
quando eu era criança
tinha um quarto na minha casa
que a gente não podia entrar
porque ali não era lugar de criança
quando tinha gente lá dentro
nem brincar por perto a gente podia
eu me espremia e espiava
mas nada via
eu acreditava que naquele quarto
só tinha coisas de criança
e por isso a gente não podia
igual comer doce, tomar sorvete
dormir sem tomar banho
não dormir enquanto o pai não vinha
atravessar aquela porta
era tudo que uma criança queria
quando eu tinha 11 anos meu pai chamou
me deu a chave
mandou correr praquele quarto
entrar no escritório e pegar umas pílulas
o quarto era um escritório
fiquei uns segundos lá dentro vendo tudo que tinha
quando meu pai chamou de novo
eu corri
foi a última vez que vi meu pai
depois daquele dia
lugar nenhum na casa era lugar de criança
forte apache
quando era pequeno
eu e minha mãe brincávamos de forte apache
lá pelas seis da tarde
quando vinha escurecendo, quase noitinha
ela me colocava embaixo da mesa
e me dizia pra sair só depois que ela voltasse
quando o pai chegava e batia na mocinha
eu tentava sair do esconderijo
igual a meu coração empurrando as costelas
eu forçava as pernas das cadeiras
mas sem forças pra transpor as grades adormecia
já tarde ela me acordava
tinha acabado a brincadeira
o pai não era mais o bandido
dormia o sono dos justos no sofá da sala
madeira vermelha feito brasa
há nos trópicos
um país de maiakovski
e o homem feliz
ainda sonha com democracia
a cadela do fascismo está parindo
a cadela do fascismo é debochada
a plena luz do dia morde canelas magras
e lambe as botas do senhorio
trafega pelas avenidas sanguinária
a espreitar camisas de cor hostil
a cadela do fascismo está parindo no meio fio
a cadela do fascismo invade festas
pidoncha, mendiga brechas para matar
seu ódio aos que dançam e cantam
é motivo para pendurar gargantas no seu altar
a cadela do fascismo está parindo no bar
a cadela do fascismo quer impor sua moral
em apartamentos fechados amarra pés e braços
quer a todo custo deter sua insegurança sexual
quer exorcizar seus demônios tal qual o vigário
a cadela do fascismo está parindo dentro do armário
a cadela do fascismo está parindo
e a nós resta o que?
combater o medo com pirraça
sambar em cima do preconceito em plena praça
varrer o ódio com ternura, esperança e graça
e nunca baixar a cabeça
porque não temos nada a esconder
fetiche divino
aquelas pernas
que não me arrisco
não foram feitas para perecer
que mal há em deus
para fazê-las tão humanas?
ouro de tolo
ambição reluzente
de uma paixão opaca
em cada pepita esvaece-se a vida
numa loucura inata
na destreza de ourives
lapida as crises
com sua própria faca
hoje é domingo
pede cachimbo
e o cachimbo é de lata
Ilustrações: German Lorca
Foto/Ramon: Fábio Ansolin
Ramon Ronchi é escritor e professor de Literatura e Inglês no Ensino Médio e Fundamental, nasceu em 1987 em Ponta Grossa/PR. É graduado em Letras (UEPG) e atualmente cursa Mestrado em Estudos da Linguagem pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Teve poemas publicados em coletâneas como TOC 140, promovida pela Festa Literária de Pernambuco (Fliporto) em 2010 e 2011 e Concurso Nacional de Poesias realizado pela Prefeitura Municipal de Ponta Grossa em 2011. É o autor de Forte Apache, livro de poemas lançado em 2019 pela Editora Penalux.