Coluna Guido Viaro: Grand Tour/Capítulo 8

Ikustração: Loeber Bottero


Há quase três anos viajo, aprendendo, estudando, conhecendo pessoas, descobrindo novos mundos. Mas hoje é um dia especial, é a primeira vez em todo esse tempo que começo a me cansar da novidade, e almejar alguma espécie de rotina. Soma-se ao cansaço a saudade de minha família, amigos, o velho mundo que deixei para trás e que, espero, ainda me reconheça quando voltar. Chegará um momento em que as camadas de memória dessa viagem se acumularão de um jeito, que só me lembrarei do mais recente ou importante, e muitos meses de descobertas e aprendizado, simplesmente desaparecerão. Sei que Waterfall andou trocando correspondências com meu pai a esse respeito, mas ainda não temos uma data para iniciarmos o retorno.
                                                        
Ontem à noite ele me disse que o dia de hoje seria diferente, eu mesmo descobriria meus caminhos, encontraria atalhos até desembocar no rio de meus verdadeiros interesses. Nada mais disse. Hoje pela manhã Cunningham me deixou em frente a uma imensa biblioteca, no coração da cidade de Parma. Chama-se Biblioteca Palatina. Imensas estantes em madeira clara carregadas de livros encadernados em couro avermelhado erguem-se do chão ao teto. Há também um setor dedicado a pergaminhos, onde estátuas com rostos de homens e mulheres congelados em mármore branco, parecem vigiar os frequentadores, as pinturas estão por toda parte, em forma de quadros ou afrescos, e retratam além de cenas bucólicas, outras em que grandes homens estão envoltos com o livro. O objeto que parece dar sentido a esse lugar. Não consigo ter ideia de quantos sejam, mas apenas olhar para todas aquelas estantes já me causa um certo cansaço.  
                                                                 
Nas mesas de trabalho muitos estudantes folheiam dois ou três volumes grossos, passeio por entre eles e descubro restos de geometria que se misturam a textos religiosos em latim, há também botânica, geologia, ilustrações de animais, e compêndios da história universal. Sinto-me perdido, por onde começar, em qual direção devo seguir? Quando me perguntam qual é meu principal interesse costumo responder que é a poesia. Mas qual delas, a de Shakespeare, de Racine, do jovem Wordsworth, ou a minha própria, que nunca foi escrita?
                           
Passeio por uma imensa seção onde poetas de todas as épocas coabitam sem constrangimentos, John Donne encosta-se a seu compatriota John Milton, mas há muitos outros de quem nunca ouvi falar, e que estão ali, disponíveis para serem abertos e revelarem suas rimas e mundos interiores, cada um daqueles volumes uma vida inteira, sofrimentos, alegrias, esforços e esperanças, lágrimas e suores convertidos em papel. Mas, e as vidas? Agora secas, como folhas de outonos anteriores, transformadas, se tanto, em uma memória pronta para também desaparecer. Cada livro uma semente da alma daqueles mortos, que germina a cada vez que alguém abre algum daqueles livros.  
                                           
Vasculho, persigo meus caminhos, escuto, cheiro, mas estou perdido, nesse mar de almas ansiosas para serem revividas. Essa caricatura de eternidade a qual almejam os homens mais vaidosos, e a qual sucumbem os generosos. Tudo me parece tão distante, a morte, a vida, a poesia, ruídos longínquos me distraem, riachos e estrelas indicam direções, mas há outras vozes, que falam em caminhos opostos. O mundo se divide entre as muitas certezas alheias e a grande dúvida dolorosa que sou eu. E minha única escapatória é prosseguir dentro da fragilidade, arrastando meu pés pesados pela dúvida. Para onde olho vejo livros, e eles todos me oferecem explicações concretas, mesmo os delírios de Dante pelo inferno, estão repletos de certezas, até as dúvidas de Hamlet são cerzidas com fios concretos. Qualquer obra acabada é uma declaração afirmativa.  
                         
Enquanto eu, não sei o que escrever, e nem ao menos se, de fato, desejo escrever. Talvez deseje apenas as certezas. Uma vez Waterfall me citou uma frase do filósofo Kant que nunca esqueci, as palavras não me lembro bem, mas diziam mais ou menos isso: O homem demonstra maior inteligência à medida em que, em sua vida, consegue melhor suportar situações de dúvida. Então o que faço é justamente o contrário, busco uma certeza que por si só não possui valor. E qualquer obra de arte construída como busca por certezas, também deixará de ser arte. É preciso sabedoria para, em determinadas ocasiões, abster-se da arte, ou de qualquer outra forma de criação. Mas, é necessária ainda mais sabedoria, para detectar quando esse período de abstinência deve cessar e o trabalho torna-se imprescindível. 
                                                                                                                
Passeio meus olhos pela infinidade de títulos, que parecem pessoas aprisionadas, todas gritando para que as liberte. Nenhuma delas possui um argumento importante o suficiente para que me decida em seu favor. Fecho os olhos, e ao acaso, retiro dois livros de uma estante. São grossos e pesados e pela poeira que havia parecia que há anos descansavam sem serem lembrados. Empresto-lhes a vida que há em mim. Sinto que em alguma esfera, distante, ou próxima, em algum reino escondido, disfarçado por outras dimensões, encoberto por aparências insuspeitas, em algum não lugar, ainda mais estranho do que aquilo que experimentei quando caí da macieira, alguém agradece por meu ato, e respira convulsivamente, como aquele que muito tempo passou submerso. O livro é escrito em italiano, o autor Giuseppe Tanino, até onde me permite o domínio do idioma, parece tentar explicar a criação do universo, há belos desenhos daquilo que parece ser um berçário de estrelas, na página seguinte muitas das estrelas partem-se em pedaços formando os planetas. Há longos capítulos dedicados à origem da vida, mas sem qualquer menção religiosa. A vida, segundo Tanino, parece haver evoluído, porque sua forma imediatamente anterior, apresentava fadiga de ser o que era. Então desfazia-se de cansaço para que outra forma fresca assumisse seu lugar. 
                                                                          
Lamentei não haver um domínio melhor do italiano, mas depois de três anos, já conseguia falar bem e ler textos não muito complexos, o problema era que, na parte final do livro as ideias ganhavam peso, e certamente perdi conteúdos quando tentei interpretar frases muito longas que para mim permaneceram despidas de sentido. Pedi ao funcionário da biblioteca se ele possuía um dicionário italiano-inglês. Além desse, trouxe-me também um dicionário do idioma italiano, que me foi um pouco mais útil, mesmo assim a compreensão passou longe de ser a ideal.  
                                                                        
De qualquer maneira passei a tarde em cima daquele interessante livro que, nos últimos capítulos, até onde compreendi, procurava construir raciocínios filosóficos sobre a origem de todas as coisas, sem no entanto, cair na tentação de chegar à conclusões. Conclusões essas que, segundo o autor, se transformariam imediatamente em frutas arrancadas do galho. Para que eu mesmo não incorresse no risco de chegar à minhas próprias conclusões respirei fundo e abri o segundo livro que havia retirado da prateleira. Desta vez nenhuma sensação de que alguém, em algum lugar, enchia seus pulmões sedentos, sepultados por décadas entre folhas de papel empoeiradas. A obra versava sobre aritmética e depois de passear por triângulos, cones e fórmulas matemáticas, nada senti, fechei o livro sem o menor remorso. 
                                                                                             
Voltei ao primeiro livro, que, não sei como explicar, parecia nervoso por eu havê-lo abandonado por alguns instantes. Olhei para os lados, muitos estudantes compenetrados mergulhados em pilhas de livros, não percebiam como a luz da tarde entrava de maneira perpendicular pelas janelas e manchava de dourado os grandes tapetes ricamente ilustrados. Eles nadando em seus anseios, e eu, uma consciência que observa sem tomar partido, flutuando nos mares da vida e sendo jogado de um lado para outro como uma garrafa vadia. Então percebi que sempre há escolha, eu, de alguma forma, havia optado pela não opção, pela possibilidade de deixar-me ser conduzido por forças maiores do que as minhas. 
                                                                                                               
O livro que tinha em mãos, me pareceu o único antídoto para aquele veneno, o autor, parecia ser capaz de ser mordido muitas vezes por serpentes venenosas e isso não lhe faria mal algum. Daquilo que entendi, Tanino desconsiderava o tempo como um valor absoluto e universal. Ele, o tempo, rumava sempre em duas direções, o que para efeito do todo, acabava anulando-o. O tempo apenas existia para aqueles que prosseguem suas existências em uma única direção, seja do passado para o futuro, ou na direção contrária. Esses sentirão os afeitos do tempo, e os outros, aqueles que rumam do futuro, na direção do passado, experimentarão algo muito parecido, e que Tanino nomeou como os efeitos do anti-tempo As páginas seguintes eram cobertas por ilustrações, mulheres que com agulhas de tricô cerziam, cada uma delas estava posicionada em uma extremidade da ilustração, e se encaminhavam para um inevitável encontro, onde a faixa de lã que cerziam, se uniria, formando uma grande realidade, que segundo as legendas da página, tudo comportaria, seria as somas de todos os tempos e eventos que, dentro de um quase infinito raio de possibilidades, estariam passíveis de existência. 
                                                              
Esse processo, segundo o autor, era eterno, tanto em suas dimensões espaciais, quanto nas temporais. Mas, e aí residia a diferença de seu pensamento que, aparentemente poderia se parecer com partes de um conhecimento ancestral do Oriente, do qual Waterfall já havia me falado, era que, na teoria de Tanino, tudo era ativo, e a medida que se construía, formava novas dimensões que até então não existiam, ou seja, a cada instante, a realidade tornava-se ainda mais complexa. Os deuses indianos obedeciam a um esquema, que apesar de grandioso e encantador, era mais ou menos fixo. Tanino havia introduzido a possibilidade de que novas eternidades se somassem àquela que já existe. O que não deixa de ser irônico, e o que pode, e isso apenas as décadas e séculos conseguirão dizer, que seu tratado científico revele-se uma obra literária disfarçada de ciência. Mas essa é uma questão menor, porque além da pretensa ciência, havia ali também muitas camadas de filosofia. 
                                                        
Não me considero capacitado para julgar a qualidade e profundidade dessas camadas filosóficas, mas sei que a filosofia, apesar de a olhos desavisados parecer o que de mais perene existe, assim como qualquer outra realidade, está sujeita ao tempo, e portanto envelhece e morre. Entretanto, não é isso que a desmerece, pois talvez seja ela, dos esforços humanos, aquele que mais fundo mergulha no oceano ao qual temos direito. Portanto mergulhemos na filosofia contida na obra de Tanino: 
                                                                                       
O instinto de sobrevivência, que faz a vida prosseguir indefinidamente, é uma consequência, ou em suas palavras, um reflexo da estrutura universal, que a seu modo, também luta pela própria reprodução e sobrevivência individual. Aliás, não é apenas a vida, ou o instinto de sobrevivência que são consequências ou reflexos desse conjunto auto-procriante e eterno de universos que não cessam de nascer e morrer, todo o resto, objetos, animais, pessoas e seus sentimentos, todas as forças físicas jamais medidas, e aquelas que a ciência ainda desconhece, tudo é, a seu modo, um reflexo ou uma consequência do grupo universal que nos envolve. As criações do artista e as descobertas do cientista, os sonhos noturnos e os mistérios silenciosos da natureza, tudo, segundo Tanino, já aconteceu em outras camadas e agora repete-se como uma realidade ao alcance de nossos olhos.  
                                                                                                                            
As forças universais se alimentam de um moto-perpétuo, como uma esfera impulsionada girando sem parar sobre o próprio eixo. Segundo Tanino, o impulso original que fez tudo começar a mover-se, essa força só é importante à medida em que existe, mas sua origem, não possui importância, visto que é algo tão estabelecido, que torna-se insondável “Aos homens, os mares em que conseguem nadar.”. Ele usa essa frase para ilustrar sua teoria. E então prossegue: “nossa filosofia deve possuir a mesma estatura que encontramos no espelho, sua grandeza deve vir da solidez e da coerência, entretanto há outras filosofias que não nos pertencem, e que se tentarmos alcançá-las, apenas conheceremos quedas dolorosas e um grande vazio.  
                                            
Fechei o livro pois precisava de algum tempo para deglutir aquele conteúdo. Senti um calor que vinha de minhas mãos em contato com a capa de couro e, não sei se foi uma sugestão de minha cabeça ou uma confusão mental qualquer, mas por alguns segundos senti a energia daquele animal que havia emprestado involuntariamente seu couro para a confecção da capa. Mais do que isso, naqueles dois segundos, fui aquela cabra, de seu nascimento até a morte violenta que sofreu. Soltei o livro e imediatamente a sensação desapareceu. Talvez uma consequência tardia de minha queda, já distante, da macieira, o mundo voltando a mostrar-se sem roupas, alternando membros, três braços, cinco pés, nenhuma cabeça, pares de olhos onde cada um deles enxerga o tempo escorrendo em uma direção.  
                                                                               
Enquanto preparava meu sorriso irônico e estava prestes a classificar o autor como um conformista, precisei desistir do deboche e concordar com nossa limitação, não fomos feitos para sermos todos, e mesmo se conseguíssemos, ainda assim seríamos um nada se comparado ao todo. Somos crianças feitas para nadarmos em águas rasas, mas mesmo estando condenados a essa condição, podemos aproveitar os reflexos do céu, que se combinam com os desenhos da espuma do mar, e descobrirmos nesses intervalos criativos, que nadam entre formas e cores, o nascimento de um novo mundo cheio de muitos como nós. Então podemos conversar com nossos vizinhos, ouvir o que sentem, quais suas expectativas, se já estão conformados com suas condenações ou se ainda sonham libertar-se. O sorriso então finalmente pousou em meus lábios: não seríamos sementes de novos universos? Organismos precários, mas que a magia das múltiplas conexões, e os infindos jogos de consequências transformarão em poderosas máquinas de produção de existência? E esse imenso sem fim, que hoje tudo engloba, já não terá tido carnes, dores e dúvidas?   
                                            
Meu sorriso se transformou imediatamente em uma imensa onda de otimismo que me jogava de um lugar a outro. Fiquei em pé e caminhei pela biblioteca, encarei alguns bustos de mármore, aquela eternidade nada representava diante da verdadeira, a qual, se minha teoria fosse confirmada, todos nós estávamos condenados. Éramos todos herdeiros de ricas famílias, que enquanto ainda não receberam o que lhes é de direito, distraem-se com sonhos, que depois irão se provar insignificantes. Condenados a uma plenitude que contém em seu bojo todos os sentimentos que existem, e que para que haja o equilíbrio, anulam-se uns aos outros.  
                                                                                      
Uma teoria difícil de ser sustentada, assim como meu sorriso, que em poucos instantes se dissolveu. Passeei por estantes, mas nenhum outro livro teve o poder de comandar minhas mãos. Eu ainda vagava em meio às ideias de Tanino, que aos poucos, foram perdendo o brilho, talvez ele não passasse de um excêntrico amarrador de conteúdos que boiavam em algum mar revolto, e para isso usava como único método o acaso, atava tempo à filosofia, universo ao homem, e depois inventava pretextos que a um primeiro olhar pareciam sólidos e lógicos, mas que depois de transcorrido o primeiro entusiasmo, revelavam a fragilidade com que eram construídos. Os raios perpendiculares de luz agora incomodavam a visão dos leitores e algumas lâmpadas foram acesas, em breve a biblioteca iria fechar e um estado de confusão mental se apossou de mim. 
                      
O curioso livro de Giuseppe Tanino, cujo título “Il Mondo”, havia despertado minha curiosidade, servira para balançar meus alicerces e fazer com que as peças de meus lustres de cristal, se chocassem umas contra as outras, e algumas delas se rachassem, multiplicando por várias e deformando, qualquer imagem que se atrevesse a atravessá-las. Buscava novos móveis, lustres e objetos de decoração, e acabei apenas quebrando aquilo que já possuía, transformando o concreto em uma miríade de possibilidades sem consistência confirmada.  
                                                                                                                          
Dei alguns passos e descobri algumas poltronas que ficavam ao lado de um vitral colorido. Sentado, percebi como a luz se fraccionava e modificava as cores, contaminando com novos tons tudo o que havia à sua frente. Mergulhei naquela mistura e notei que a contaminação atravessava barreiras e não se restringia aos aspectos mais aparentes, mas também atingia camadas emocionais. As fronteiras entre formas eram muito mais tênues do que aparentavam, eu era aqueles amarelos queimados e ansiava pelos vermelhos fulgurantes. De fato, os últimos anos haviam me ensinado bastante, mas nada que se comparasse com o que acontecera no primeiro dia de viagem. A queda da macieira retirou o véu que obscurecia meus sentidos e mostrou o quão fundo e rico em dimensões era o oceano em que estou imerso. E principalmente, o quão pouco dele, eu, e todos os outros, conseguíamos usufruir.  
                                                                                       
Deixei que meus cílios servissem de filtro, mas ao mesmo tempo, adicionassem mais uma dimensão àquilo que enxergava, Então as cores que vinham dos vitrais misturados à luz poente do sol, eram esculpidas pelos restos escuros que meus olhos conseguiam captar de meu cílios, as cores piscavam, sumiam para voltarem a nascer por detrás de uma sombra, e mesmo que aquilo que ouvisse não passasse dos ruídos da biblioteca em final de expediente, tudo aquilo era extremamente musical. Uma música que também era dança, mas que mais do que tudo era movimento, acontecendo e enchendo minhas narinas de um odor que devia se originar de outros sentidos. Um estranho cheiro que construía memórias, mas todas elas aconteciam no tempo presente, e não davam garantias de que seriam recordadas.   
                                                                                                
Estranhos e profundos universos acessíveis a todos aqueles que possuem olhos e um pouco de sensibilidade. A biblioteca fechou e todos foram convidados a se retirar. Tentei prolongar minha experiência do lado de fora mas não obtive muito sucesso, faltavam luzes, cores, cílios, talvez faltasse apenas o instante destinado a tudo acontecer, mas ele certamente permanecia lá, oculto como o sol durante a noite. E talvez nós recebamos essas mensagens vindas de outra realidades, somente durante o intervalo de tempo em que elas nos são suportáveis, não podemos flutuar para sempre em águas profundas, é necessário que o pé que toca as rochas sólidas seja o responsável pela maioria de nossos instantes. E que venham os suspiros de desencanto, lamentando o desconhecimento de mundos que, em teoria, estariam ao nosso alcance, que se transformem no brilho fugidio dos rubis banhados em sol, na memória avermelhada que pincela o tédio e faz renascer de dentro da terra deserta, a vida em muitas formas, vida que também suspirará e desejará. Somos escravos de nossos contrários, e eles, por sua vez, obedecem a nossos desejos mais obscuros.    
               
Sento-me em frente a uma fonte de água, que jorra da boca de um peixe feito de mármore. A noite quente molha minha fronte e eu desejo aquele peixe, assim como desejava as luzes misturadas da biblioteca, e nesse instante transformo desejos em acontecimento, sou, estou, e vivo, e nada me parece mais sólido do que isso, e assim sendo, não há desejo capaz de sobreviver a esse sol. Com tudo ao meu redor derretido, só o que sobrou foi aquele que é, está, e vive, e que agora está cercado por uma liberdade que era do tamanho do universo quando ele ainda existia.    
                                                                                                     
Parma vagueia ao meu redor, sou um de seus habitantes, e todos eles são pedaços de mim, mas também sou estrangeiro, óleo misturado na água, alheio a qualquer um destes destinos que me olham ou desconhecem, vago, sou vago, os sentimentos todos escorreram por algum furo e mancham as calçadas por onde caminho, e então desaparecem sugados pelos calores da noite ansiosa. Sou o ente seco, absoluto, que nada deve e a nada tem direito, ardendo sob um sol que brilha do outro lado do mundo, repleto de seus vazios, suando águas alheias, gritando mudo palavras nunca inventadas, agindo com todos os desesperos, pacientemente inflado por cada glória a que qualquer um tem direito, apenas sendo. Contente com esse triunfo sem tamanhos. Orgulhoso de não possuir orgulhos.  
                                                                                                                           
Viajo. Transporto-me à Inglaterra, a carruagem chega à minha casa, carregada de estátuas de mármore e quadros. Abraços, lágrimas. Pilhas de velhice misturadas a entusiasmo juvenil, forças e promessas, agradecimentos de todos os pesos. Londres, casa, mãe, futuro, montes de dias prontos para serem descortinados, montanhas em que parte do conteúdo apodreceu. Dias de cansaços, abraços e explicações. Jantares com amigos dos pais, palestras dissolvidas entre entusiasmos borbulhante, mas secos. Parabenizações vazias, as estátuas de mármore instaladas no jardim, os quadros na sala de jantar, as semanas acalmando-se, Waterfall e Cunningham desaparecendo na bruma, transformando-se a cada dia em ecos menores do que no dia anterior. As mulheres destruídas do cocheiro espetadas em alguma dúvida que flutua em meus rios mais noturnos.   
                                                                                                   
O possível filho de Alessandra, e meu, em seus últimos dias de uma longa vida, olha para trás e tenta identificar em que momento tomou uma decisão errada, que determinou o rumo de sua vida, com o qual, possivelmente, não está contente. A ausência de um pai, e as dificuldades de sua mãe para criá-lo, não são nem ao menos consideradas. Ele não chega à conclusões claras, mas suspeita de uma intrincada soma de acasos que conduziram a determinadas consequências, de onde, segundo julgou, seria impossível agir de outra maneira. Sem bater o martelo, determina-se uma vítima do destino. Mas as consequências que colocou em questão, nasceram de causas muito mais antigas, parte delas são inglesas, e originadas do enriquecimento de minha família, que como a maioria de outras famílias na mesma condição, passaram a não se contentar apenas com o dinheiro ou demonstrações mais evidentes de que se possui fortuna. Era preciso distinguir-se dos outros pela cultura, sofisticação e refinamento, e a melhor maneira para adquirir essa nova maneira de riqueza, era no exterior, em países onde a arte afluísse como faziam as ovelhas na Inglaterra. Então, o burguês entediado, mas previdente, pensaria em primeiro lugar nas próximas gerações, elas que atravessassem fronteiras, aprendessem idiomas, conhecessem artistas, e suas maneiras de escavar o mármore e colorir telas. 
                               
Então, já não muito distante do final do século 19, esse possível filho, desaparece, fecha os olhos, abre outras possibilidades, entre elas o nada absoluto. Deixando para trás múltiplas linhas de caminhos não escolhidos, e uns poucos em que pisou seus arrependimentos para então buscar outro, não muito diferente do anterior. Esse homem incompleto, tanto quanto qualquer outro, finalmente se esvairá, quando as frágeis marcas que deixou, forem varridas por uma brisa feita de tempo. Mas sobre seus ombros incertos pesa ainda mais uma condenação, a de ser não ser um homem de fato, mas apenas uma possibilidade flutuando entre o sol do existir e a escuridão onde nada se realiza.    
                                 
E parte dessa pena precisa ser cumprida por mim, carregarei essa possibilidade enquanto viver, em momentos de enlevo e descontração, lá estarão dedos me lembrando de que é possível, a qualquer momento, um desvio se abra no meio de minha vida e eu seja conduzido contra minha vontade a um lugar que jamais imaginei existir. Tudo poderá se tornar ainda mais vivo, se algum dia, eventualmente, eu tiver um filho, ele ou ela, não substituirão a possibilidade, mas sim se somarão a ela, como irmãos de mães diferentes, e a cada vez que ver ou ouvir meus filhos concretos, estarei lembrando-me da possibilidade, que estará viva dentro de mim, enquanto em meu âmago existir refúgio capaz de abrigar um coração. 
                                                                                                         
Anoitece em Parma e amanhece em Veneza. Uma das muitas madrugadas em que decidi caminhar sozinho pelas vielas, acompanhado somente por gatos insones e desconfiados. Perdia-me entre caminhos estreitos, que sempre terminavam em alguma ponte, então o canal alargava o tamanho da rua, e me conduzia a algum ponto de referência, Rialto, Praça de São Marcos ou o novo Teatro La Fenice. Carregava comigo papel e caneta para o caso de conseguir transformar em palavras aquilo que via ou sentia. Mas os papeis sempre retornavam brancos. Não sei se o que sentia não era suficiente para marcá-los, ou então se o erro estava em meu domínio sobre as palavras. Inclino-me a dizer que a segunda hipótese é a mais provável. Sentava-me por longos períodos em becos sem interesse onde não havia mais do que um fundo de fachada mal iluminado, estava interessado no imenso silêncio apenas levemente pincelado pelas marolas chocando-se contra os casarões, e os passos surdos dos gatos, curiosos para saber o que fazia ali naquele horário. Por vezes escutava algum ronco que vinha por detrás das venezianas de madeira, então tentava imaginar onde estaria aquela pessoa que roncava, em que reino de sonhos. Talvez flutuasse sobre minha cabeça, ou então mergulhasse na baía de Trieste com algum parente já falecido, e do fundo viesse com um daqueles ouriços do mar atravessados por um arpão. 
                                                                                    
Depois me arrependia de divagar tanto, o universo e a realidade são tão vastos, que se não limitarmos nossos interesses, nunca chegaremos a lugar algum. Imediatamente desconfiei de minha própria ideia, tal pensamento é típico de alguém que, apesar de afirmar o contrário, almeja conclusões claras que sirvam para lhe explicar a vida. Estaria eu, sem perceber, construindo meus próprios dogmas, que serviriam não apenas para amainar minha selvagem sede de descoberta, como possivelmente aliviar o mesmo anseio em outras pessoas?   
            
Uma brisa moveu as nuvens e encobriu os raios de luar que me iluminavam. O beco escureceu e os gatos foram embora, o silêncio escuro pareceu propício a duas finalidades, a primeira era o desespero. A segunda era prosseguir raciocínios iniciados sem que nada interferisse. Optei pela primeira, passos desordenados misturando memórias ruins e expectativas ainda piores. Mas o desespero foi fogo de palha, as grandes chamas logo perderam a força e só o que sobrou foi um vazio tão absoluto, que fui forçado a escolher o outro caminho. 
                                                                                                                            
Sim, era exatamente aquilo que estava fazendo, apagando as chamas vivas que incendiavam as órbitas de meus olhos, para construir um confortável ninho de meias certezas onde poderia usufruir de prazeres carnais, visto que o espírito adormecido não mais interromperia esses gozos com seus ataques de ansiedade e suores imprevistos. Então me pareceu lógico, que o pior que pode acontecer a um homem que pretende cultivar uma vida espiritual, é condenar o próprio corpo a um conforto absoluto. E caso isso aconteça, o que não virá de uma hora para outra, mas aos poucos, renunciando a uma dúvida aqui, a uma inquietação acolá, costuma haver um movimento no sentido de justificar as desistências, diminuindo suas importâncias, e aumentando o valor das eventuais conquistas. O desistente é um homem com todas as veias do corpo abertas, e para que não desista da vida, é preciso bloquear a sangria, tapando-lhes as bocas avermelhadas com dogmas. 
                                                                                               
Quem é Waterfall senão alguém completamente entupido por dogmas? Não importa que seus dogmas sejam históricos, culturais ou artísticos, eles continuam sendo dogmas. Pedaços de informação congelados no tempo e que não interagem com seus vizinhos. Por outro lado, não posso dizer que ele não me foi útil, pois foi através dele que consegui perceber que desejava trilhar o caminho oposto. Mas perceber não é realizar, e esse caminho doloroso deixa muita gente destruída, sem dali, nada construir.  
                                                          
Parece que a vida vai molhando a gente, e somos nós que precisamos ir atrás do calor que serve para secar a pele, mas que também é a causa pela qual a pele foi molhada. Tudo tão complicado para quem possui dois olhos e uma consciência confusa. É preciso fechá-los, abri-los, e se esquecer daquilo que foi, e do que deixou de ser visto.   
                                                                                                    
Nesse beco escuro, reconheço minha juventude, e sei ser ela a responsável por nesse instante, dois olhos da cor do rubi, iluminarem toda Veneza. Olhos que agora carregam em si oceanos, que contêm universos, que dançam como peixes encantados consigo mesmos. Selvagens feras prontas para devorarem a escuridão e mastigarem suas carnes até que Veneza se renda e manche com alaranjados as águas do Grande Canal. Mas a noite resiste bravamente não indicando qualquer sinal de fraqueza, ao contrário, pesa-me sobre os ombros como uma imensa rocha escura: sou uma perda de tempo, inviável, uma escolha errada, um condenado ao afogamento que, em vão, tenta agarrar-se a peças soltas de chumbo, que só flutuam até o instante em que são tocadas, para então puxar-me para baixo.  
                                                                      
Engulo meu desespero, que transforma-se em ansiedade no instante em que ouço dois gatos brigando e um deles fugindo pelos telhados. Caminho no escuro, com cuidado, afundando dentro de mim, louco para comunicar a alguém sobre meu desastre. Mas o mundo é inabitado, preciso me conformar. A lua volta de seu passeio e joga um pouco de prata sobre o beco, conseguindo derreter parte do mal estar. Vejo minhas mãos e pés, e eles parecem saudáveis. Faço-os trabalhar, caminho com cuidado, escuto meus passos, e sigo o barulho de meus sapatos. Como sempre acontece em Veneza, desemboco em uma viela mais larga, que conduz a uma ponte de pedra. Sento-me sobre degraus cobertos por um espesso limo verde, e aquela forma de vida parece soprar sobre mim um entusiasmo sem outra justificativa.
                                                                                            
Apalpo as panturrilhas e sinto o movimento involuntário dos músculos, escuto barulhos sem origem vindo dos telhados, a luz é estranha, e a claridade parece não vir apenas do luar, uma brisa quente originada na água traz uma ideia estranha, aquele lugar, daquele jeito, com as luzes e sensações que carrega, parece uma espécie de berçário onde germina e se desenvolve o acaso. Em cantos esquecidos e sem testemunha como esse, é que aquilo que não obedece ordem, e não pertence a qualquer sistema, costuma se desenvolver. Nasce, para depois servir de contrapeso ao mundo, quando ideias e sistemas costumam se tornar muito rígidos.   
                                                                                                                
E é sentado sobre esse tapete de vida, e mergulhado dentro da bolha fervilhante de acaso, que assisto à chegada do ouro. Uma pepita flutua sobre o sumo escuro que, silencioso, arrasta-se sob a ponte. Meus olhos de garimpeiro brilham mais do que o dourado. A juventude do dia despeja seus desejos sobre a noite envelhecida. O acaso parece haver se ausentado, pois em situações como essa, em que a existência é o alvo da disputa, ele sente-se sem função, um inútil cuja alma é invadida por escuridão. Mas esse, agora, já não é mais o meu caso, sou o novo dia e todas suas cores. E é atrás delas que vou.  
                                                       
Já sem medo, caminho por entre vielas, atravesso pontes e pequenas praças perdidas entre casas ainda adormecidas, os primeiros sinais de vida brotam das chaminés, mas não demora até as primeiras portas darem passagem a figuras recém acordadas e ainda não adaptadas ao novo dia. Preciso me apressar, dobro esquinas ao acaso, já não me lembro da sequência que me levaria a grandes espaços, mas alguma força, talvez o acaso iniciando seu próprio dia, parece me conduzir.  
                                                                                                               
Carrego um desejo tão grande, que se piscar um olho, o mundo inteiro florirá. Por isso mantenho os olhos bem abertos, e são eles que vêm ao longe uma gôndola atravessando entre dois prédios, uma embarcação que singra águas largas. Corro carregado com esperanças pesadas. Reconheço os palácios e os postes listrados onde ficam amarradas outras gôndolas. Esse é o Grande Canal.   
             
Os escuros do céu perdem convicção, a palidez empresta dúvidas aos rostos já conformados com a transição. Ninguém parece seguro de que o sol conseguirá atravessar a barreira da noite anterior. Sento-me em um pequeno cais, em frente a uma gôndola amarrada, que chacoalha, e pela cor escura, parece ser mais noturna do que a note em que está mergulhada. O mar ao seu redor ainda é uma mancha preta feita para esconder mistérios marinhos desconhecidos como a matéria de sonhos exóticos. O tempo está parado, a noite parece haver se estabilizado e deixado de decair, um mundo como o de Pompéia, uma grande nuvem escura impedindo que tudo viva e se deteriore.   
                                                  
Uma brisa move as águas e meus cabelos, o espaço vive e essa descoberta enche meu peito de um entusiasmo fulguroso, sinto meus membros em seu esplendor maior, o sangue circula com velocidade, e meus olhos enxergam tonalidades do mar que devem passar despercebidas a outros: a juventude é flor, e ela, são cor e forma no dia de suas maiores perfeições. Depois de hoje a cada dia, um pouco menos, e ainda menos, até o mergulho em águas escuras. Mas não há nessa constatação, um pingo de mágoa, ser é saber que não se será. Estrelas, que são há muito mais tempo que os homens, já estão acostumadas com sua condição, por isso não escorrem do céu chuvas de lágrimas estelares.  
                                                                                                        
A brisa agita a primeira camada de águas, que formam marolas, o jogo de consequências agita as gôndolas amarradas, essa é a primeira e talvez única lei do universo: tudo o que existe gera uma consequência. VUUUUUUUCCCHHHHHHH, Zappppppppptttttt, olhos gloriosos desses peixes do Grande Canal, sublimes máquinas de revelar a realidade, perceberão quando o dia raia, a chuva cai, ou quando uma estrelas silenciosa pisca suas grandezas anônimas no firmamento? Perceberão que percebem, que alguém percebe, que existe algo a ser percebido?  
                                                                      
As pepitas de ouro se espalham pelas águas do canal, a noite anterior é um doente desenganado, as alegrias se somam às belezas e resultam em promessas, a mesma velha promessa de permanência eterna. Os olhos e ouvidos fatigados de homens e mulheres, não se deixam iludir, e fingem que aquela beleza não existe.
                                                                                                                   
FLUCCCHHHHHHHHH, PLOCCCCCCCCC, zumbem meus ouvidos e arrastam consigo todos meu outros restos, talvez a alma esteja entre eles. Sou, porque estou consciente de mim e daquilo que me cerca, mas por outro lado, também me sinto do outro lado, um não-lugar que é mais sensação do que outra coisa. E é daqui, dessa sensação que é maior do que as palavras que poderiam tentar descrevê-la, mas menor do que qualquer representação de forma física, é desse lugar sem peso ou endereço, e que parece protegido contra todos os efeitos do tempo, que assisto a todos os dourados dançarem suas esperanças sobre as águas do Grande Canal.   
                                                                                                     
Mas, sem perceber, sou transportado de volta para o mundo físico, o universo inteiro e toda a vida que nele habita, são ondas em movimento, deixando para trás suas antigas crenças e moradas. De vez em quando encontramos rochedos inexpugnáveis que parece que nos protegerão das flechadas do tempo, mas as ondas os fazem desaparecerem, os transformam em líquido, ondas prontas para desabar sobre nossos dorsos.
                                              
Engolimos os durados que nos fascinavam os olhos, transformamo-nos em orelhas, cloacas, dissolvemos orgulhos e mágoas em oceanos ácidos, para então, despidos de julgamentos, ódios, e dourados, fazermos o que farei em seguida: fico em pé, e em um espaço pequeno de água, que fica entre a gôndola negra e os dourados já atenuados pela hora da manhã, nesse retângulo irregular que mistura muitas cores e sugere outras, e que talvez em sua dimensão mais profunda esconda formas de vida difíceis de serem imaginadas, assisto a meu retrato, com todas suas imperfeições e modificações causadas pela inconstância das águas. 




Guido Viaro é um escritor, cineasta, administrador cultural e palestrante nascido em Curitiba em 1968. É autor de 22 romances dentre eles o livro O Cubo Mágico, premiado com o primeiro lugar na categoria romance no Concurso Biblioteca Digital 2020, da Biblioteca Pública do Paraná. É também autor do ensaio filosófico O Labirinto Espelhado e de quatro filmes entre ficção e documentários. Desde 2009 administra o Museu Guido Viaro, entidade cultural que tem por missão divulgar e preservar a obra de seu avô, o pintor italiano Guido Viaro. No museu as atividades artísticas não se atém à pintura, mas englobam música, cinema, literatura e teatro.

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