INTRANSIGÊNCIA
do que enxergam têm tudo.
o pão, o vinho
o ódio
quem sou já não sei
a identidade a liberdade
angústia do outro
me prendeu
injusto julgamento
sei que sou mais cobra nutrindo-se ratos indigestos
e sei que deles
ratos
me desfaço
e o que pareço?
corpo de alegrias num motor desesperado?
contexto pobre de poeta podre
mas poeta
e ainda notícias
falsas e repletas de pequenas verdades
nessas miudezas pequeno me engrandeço
porque o que enxergam é só o que enxergam
e nada mais
e sempre menos
escrevo-te durante a noite, camarada
porque nela me concentro melhor
o sono não vem, a poesia tarda
e o dia está longe de raiar
trago-te, é verdade, cada vez mais notícias do imenso Matadouro
é que sou urubu pairando cabeças degoladas
que em mim jamais perecerão
mas já estou tão esquecido
a História se turvou
neste poema turvo e precário
poema pobre, mas poema
tentemos nos lembrar
e há algum tempo percebo silêncios e nãos
ó silêncios
já tentou ouvir o que dizem os ouvidos dos que ouvem?
faz muito tempo desde a última vez
gostaria de encontrá-lo
sinto saudade da liberdade
convivência alegre que tínhamos
o Matadouro é podre
não como poeta (tem
menos carniça)
mas convoca visitantes
cada vez mais
a Economia gira assim, né?
mas já não sinto prazer em degolas
exausto de tanta gritaria lá fora
tenho atido ao verso
abatido
é Guerra
e tens percebido? não vi tanque, não vi arsenal
vi o führer trapalhão e as trincheiras no peito
tenho tentado encontrá-lo, mas não encontro
monólogos batem na parede e voltam a mim
estou farto, solilóquios me angustiam
há outro? minha voz tem ecoado
ecoado
escoado
e nada cessa a solidão
têm tudo
o pão, o vinho
o ódio
e eu não tenho nada
tudo tão mutilado!
poemas pobres
mas poemas!
até que não exista mais liberdade
para emitir meus urros sós de
sespero
pois: adeus, companheiro
até um dia de resposta
adeus, companheiro
se ainda companheiro
minhas páginas cerradas
cadeado intransponível
dormirei pra atenuar meu sofrimento
mas tentemos nos lembrar
do amor, da conversa, do sentimento…
HOMONIMICÍDIO
pollockeiam flashes dos moleques nos postinhos
um dois tês
vintium vintidois vintitês
tê um tê dois tê tês
respingam impermeáveis corridas, joelhos ralados e borrados:
a tela se preenche de vivo abstrato
observo
rio
absorvo
choro
tê quato tê cinco tê seis
não ruiu o que lembro e decoro, imperfeita reprodução
esta tela que jamais dispôs de factíveis pigmentos
desbota ainda e ainda:
dei fim ao moleque calado, irritado e comovido
o mundo era outro
e o mesmo
tamanha ilusão infante
pisco
desperto do daydream, curvo na cama
mãos sujas? tinta rubra?
cheiro forte e ainda meu:
falsa memória encravada
ferida de eterno sabor alcalino.
VERTIGEM
o cifrão enriquece a catedral enriquece o demagogo enriquece
o nazista enriquece o silêncio cresce a censura
cresce o extermínio cresce a milícia cresce
o ditador cresce e o povo se estapeia eia!
o “camarada” nada faz e esperneia eia!
a esperança adoece o povo adoece
a inteligência adoece a paz
adoece o amor adoece e chega um
ponto em que o ponto é tão turvo
e tão legível que não
há absurdo
que o basta
cesse
o
absurdo
cresce
MANHÃ
no princípio, trevas sobre as faces do abismo.
céu e terra e luz e verbo
dentre as trincheiras dos olhos cerrados.
tudo ali ardia:
sal marítimo onda de lembranças
espuma colérica agudo ressentir
e então dum beijo amanhecido nas pálpebras doídas
fez-se
d’aquarela rosada ao gradiente laranja
ao azul-celeste mais esbranquiçado
a onda a onda a onda
aonde os olhos ainda
ardidos do mar a perder-se
de vista marejados
gentilmente são
espuma
[SEM TÍTULO]
pensam
(se isso ou [
se fosse menino e ouvisse os pássaros
se menino fosse
capaz de ouvi-los e vê-los, sabê-los
dos bicos às penas,
dos timbres às cores e tamanhos
e se
] aquilo fosse mesmo relevante,
o vão estancaria o vão entreaberto
o portal submundo donde abalam e gritam
e soluçam e transitam almas vadias
que do sêmen do sumo do torpor do consumo
rearranjam-se [em
ninhos, abertos de tudo
aguardando
o mastigar da matriarca, as plumas e escumas e
então o farfalhar eufórico e o voo presente
o todo futuro olvidado]
)
enfim, libertam-se.
VERMELHO DE METILA (-4,4)
a infância era aquela pilha vazada
num controle remoto perdido
numa sacola num armário amadeirado
fez-se: rubra e doce
de onde parto
e eu, em toda minha loucura, nunca estive
para além da química: o “não-louco” sofre
meus fenômenos, nunca criei realidades
que não fossem realidades que criamos
inventaram-me e minha infância inventei
o controle remoto não a sintoniza,
não percorre canais ou altera o volume.
serve só para arquivar meu registro alcalino
mas de pouco em pouco percebo a forja
e o punhal que utilizo para cavucar minhas feridas
escorre aqueles mesmos novos perfumes:
rubros e doces, da infância
do sangue, rubros, doces e alcalinos
como dizem.
MÚSICA DA BAD
meu compasso é entretempo.
se descompasso o tempo forte,
no surgir da coda encontro alento
e depois de pontes e pontes
sem nenhum sustento
meus diminutos resolutos
desaparecem em corte.
scherzo em sétimo acorde,
canção à espera da cantata.
no derradeiro discorde,
o grito se abafa em melisma:
vida triste, show de fantoche,
harmonia desarmônica:
shuffle de cíclico cataclisma.
Ilustrações : Robby Cavanaugh
mielmiczukpaulo@gmail.com
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