O livro Nas profundezas desses olhos rasos, do poeta Félix Alberto Lima, acaba de sair pelo selo da Editora 7Letras. A obra reúne cerca de 80 poemas que expõem, com insuspeitada liberdade, a lírica quimérica que o autor vem esquadrinhando desde a sua estreia na poesia com O que me importa agora tanto.
“O poema não é o que você lê” – começando pela manhã de sábado, passando por um olho mágico e por muitas interlocuções ao longo das páginas e dos versos, vale o aviso logo de início nessa nova aventura poética. A poesia, afinal, trata também do que não está dito, aquilo que vai além das imagens, das palavras, das cenas e dos vestígios que o poeta espalha pelo livro, num jogo constante entre o que é escrito, o que é visto, o que ofusca e assusta a retina e o que mais couber a cada novo olhar, nas profundezas de um imaginário sem régua.
Em 2019, Félix Alberto Lima lançou Filarmônica para fones de ouvido, livro recebido pela crítica como “uma das grandes revelações da poesia brasileira deste final de década”. Segundo Jotabê Medeiros, em resenha da revista Carta Capital, o autor carrega consigo uma poesia de ritmo, coreográfica, de cadência irresistível. “É absolutamente maranhense, mas incontestavelmente do mundo, alcança todas as falas e todas as locações de um jeito instantâneo”.
Agora, com a publicação de Nas profundezas desses olhos rasos, o poeta vai mais longe e cria uma teia de versos que dialogam com o mundo – do seu sertão particular às ruas desertas do Equador; do silêncio irremediável da memória ao desalento no Pacífico.
Como o próprio título sugere, Nas profundezas desses olhos rasos é uma colcha elegantemente bem cerzida de contradições, o paradoxo sobre a mesa de jantar. Alguns dos poemas são colheitas inescapáveis da quarentena, da meia-noite de muitos sóis, versos que saltam da página como uma faca em fúria no peito do poeta.
Se o olhar é uma chave de leitura para o livro de Félix Alberto Lima, com as impressões que deixa gravadas e se traduzem na câmara obscura da alma (ínfima miragem / tatuada na memória), naquilo que fica registrado e vai além de uma vida, há também muitas outras chaves a explorar na obra – o som do primeiro disco de Coltrane, um xamã solitário no meio da mata, um baião de mar, as cores do fim do mundo, um violino ao redor das olheiras…
“O poema não é o que você vê”, mas enquanto o sol iluminar a lábia do poeta, existirá talvez um mundo novo a explorar a cada leitura, a cada descoberta, dentro de cada leitor.
QUINTAL DAS FLORES
o poema não é o que você lê
não é a palavra polida e âmbar
pinçada no labirinto do dicionário
ou a métrica perfeita como se a lírica
fosse mera combinação matemática.
o poema não é o que você vê
não é a camisa listrada
o buquê de begônia sobre o verso
ou o saveiro singrando a aurora
de um pescador sem terço ou romã.
o poema não é nada
nas mãos de um homem
que mal ouve as queixas de um antúrio
e quando ouve
– pobre homem!
não sabe o que fazer.
VESTÍGIOS
se puder
ouça o bramido das palavras
elas perecem na escuridão
e são como o sol
que no horizonte de uma tarde sem cor
não tem onde cair morto
NO OCO DA PORTA
o olho mágico há dias
não vê teus passos
e derrama queixas pelo corredor
UM VERMELHO SOL
o bem-te-vi canta
e canta alto para chamar minha atenção
não lhe dou ouvidos
não reparo no topete amarelo
na sobrancelha branca
no mergulho raso e folgazão
continuo lendo os trovadores na varanda
ele insiste bailando como um louco
sobre a jabuticabeira
eu desisto e então cantamos juntos
arrebatados
qualquer canção de escárnio
naquele crepúsculo da vida
ODE AO MUNDO LÁ FORA
se fosse solidão
eu saberia
mas no fundo
é só uma casa
dentro de mim
vazia
de tanta multidão
A CÂMERA OBSCURA (DO ALZHEIMER)
o tempo se esvai
como aquele abraço
que jamais foi dado
o beijo que faltou
a senha que assanha
a lágrima
teu corpo agora
estúpida máquina
de alma desalmada
ínfima miragem
tatuada na memória que secou
porque intacta ficou
a vida lá fora
vazia
e pouca
toda ela pra esquecer
FÉLIX ALBERTO LIMA é maranhense, 53 anos, autor dos livros de poesia O que me importa agora tanto (7Letras, 2015) e Filarmônica para fones de ouvido (7Letras, 2018). Em prosa, escreveu Almanaque Guarnicê (2003), Um pouco mais de mil palavras (2016) e Maio oito meia (2017).