ANFÍBIA
Aqui estou, todo poderoso
senhor escritor da história.
Aqui, bem aqui, por de trás
deste cipreste que apodrece
em silêncio ante o assovio
do tempo.
Me alimento deste caule
de cascas enrugadas.
Pratico esta dieta
rica em renúncia.
Nasci para parir o
esquecimento.
NÃO HÁ LAMENTO
Tomo um gole de café
às oito e trinta
enquanto a minha
secretária
dá as notícias
da manhã.
O poema inacabado
na noite anterior
ronda minha cabeça.
Tento negociar a compra
de um novo fogão
enquanto os versos
surgem, sem barganha,
sorrateiros.
Uma Pipira visita a
minha janela e um filme de
Kurosawa é anunciado
na tevê.
Olho novamente para a janela.
O passarinho aliviou-me o peso do dia.

COLHEITA
Colher
– sobre as lavas
do sono –
brotos de espera
e espanto.
Colher lírios
em campos
de lenda.
Colher flores
no assombro
das secas.
Ante o que assola
e liberta
trama-se o falar
anônimo das pedras.
E o desconhecido
que rosna
na própria boca
– face ao que
Conspira
e some –
deseja-se presença
e espectro, ainda que
semente e fome.
QUEM CONTOU A PRIMEIRA HORA?
Eu vi uma velha mulher
sentada em uma cadeira de balanço
no terraço de sua casa, e tudo estava
imóvel como uma pintura.
Ela poderia se chamar Maria, Judite, Serafina.
Mas pouco importava a Onomástica
naquela manhã minúscula.
Importava a cadeira, a brisa leve,
o olho de pedra daquela velha mulher,
que bem poderia se chamar Consolação,
Francisca, Eleonora.
Não importava a justiça, a ciência,
o desejo, o trabalho, a condução.
Importava seu braço esgotado
(sobre o braço da cadeira)
e o lábio (decaído) de quem
dita uma ilusão.
Ilustrações: Jean Fautrier

Nathan Sousa (Teresina, 1973), é ficcionista, poeta, letrista e dramaturgo. Tecnólogo em Marketing e professor. É autor de vários livros, dentre eles, Um esboço de nudez (2014), Mosteiros (2015), Nenhum aceno será esquecido (2015), Semântica das aves (2017), O tecido das águas (2019) e Anfíbia (2019), além da peça teatral O que te escrevo é puro corpo inteiro. Venceu por 05 vezes os prêmios da União Brasileira de Escritores. Foi finalista do Prêmio Jabuti 2015 e do I Prémio Internacional de Poesia António Salvado. Trabalha com escrita criativa. É colunista do blog da revista Revestrés. Tem poemas traduzidos para o inglês, francês, espanhol e italiano. Recebeu a Medalha da Ordem do Mérito Renascença.