9 poemas de Luís Palma Gomes



Mallorca

 

Agosto

Dentro da tarde.

 

A tarde

dentro do coração

da pedra.

 

A pedra

sempre possuída

por um mar lento

que a esquece,

no consenso leve

das vagas.

 

(Do livro “Dez”)


Querida Terra

Querida Terra,
às vezes apetecia-me dormir contigo ao relento.
Tapar-me com um lençol de terra fina.
E apagar a Lua,
depois de arrumar o livro no arbusto junto à cabeceira.

(Do livro “Fronteira”)


Meia Tarde

 

Para além do vidro,

uma claridade morrente

que insiste

em inventar no rasto

do nosso sono derramado,

um brando entardecer

de janelas.

 

(Do livro “Dez”)


Doce Revolta

 

Todos os dias se envenenam Sócrates.

Todos os dias se crucificam Cristos.

Todos os dias se fecham teatros para abrir circos.

Todos os dias se gaseiam inocentes.

 

Às vezes ao longe, outras defronte de nós,

todos os dias olhamos para isto,

enquanto comemos o nosso croissant. 

 

Aprendemos a viver assim.

Aprendemos a dormir assim,

esperando acoitados 

que os deuses da fortuna não se lembrem de nós. 



Dia infinito

Sabemos que só temos este dia,

por enquanto.

Ele será a luz e as trevas,
o maná e a fome,
a esperança e a angústia.

Sabemos que só temos um dia por dia,
uma rumorosa volta em torno do universo.

Dancemos então.


Parado  

 

Insone e atento

aos reflexos nas vidraças,

aguardo o instante

em que o ribombar do trovão 

ou tão só a notificação digital 

dar-me-á o sinal que o mundo mudou

e eu não. 

Via Láctea

 

Um cão azul chamado semiótica.

A inquilina da leitaria antropológica.

A fila de automóveis do medo.

As gravatas do sucesso poluente.

O amante do amor da vizinha.

O cheiro da mercearia anónima.

Os edifícios vestidos de tempo.

Um arbusto com perfil sexual.

O O’Neill a sorrir de desgosto.

O lixo do androide bancário.

 

A rua … O povo … Portugal.

 

(Do livro “Dez”)

 

 

À noite

 

À noite,

Quando me deito

Escolho um sonho entre as lembranças 

E construo com ele o tal mito 

Em que acredito ser eu próprio. 

 

 

A origem

Nada do que escreves é teu.

Tudo se afasta e retorna
como o som ofegante
de quem respira cansado
de fugir.

Se ainda não sabes ao certo
de onde te chegam as palavras,
abriga-te, então.

Vais ter de esperar
para saber se vais ou vens
da nascente.
 

(Do livro “Fronteira”)

Ilustrações: Alfredo Luz


Luís Palma Gomes: nascido em Queluz, no ano 1967, Luís Palma Gomes é poeta, dramaturgo e engenheiro. Estudou no Liceu de Queluz e depois na Faculdade de Ciências em Lisboa. Depois de publicar poesia no DN Jovem e Jornal de Letras, durante a sua juventude, entra para o Teatro Passagem de Nível na Amadora, onde interpreta o papel de D.Pedro I na peça “Pedro, o cru” de António Patrício – interpretação reconhecida pela crítica. Vence alguns prémios de poesia em Portugal e no Brasil. A carreira profissional numa seguradora afasta-o durante duas décadas do teatro e da criação literária. Aos 47 anos, é diretor de informática de uma seguradora, quando perde o emprego depois de trinta carreira. A sua vida muda de forma brusca: regressa ao teatro, como ator e autor residente do grupo amadorense; ao mesmo tempo, começa a dar aulas no ensino secundário. Em paralelo, reinicia a sua vida literária.  

 

 


 

 

 

 

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