Mallorca
Agosto
Dentro da tarde.
A tarde
dentro do coração
da pedra.
A pedra
sempre possuída
por um mar lento
que a esquece,
no consenso leve
das vagas.
(Do livro “Dez”)
Querida Terra
Querida Terra,
às vezes apetecia-me dormir contigo ao relento.
Tapar-me com um lençol de terra fina.
E apagar a Lua,
depois de arrumar o livro no arbusto junto à cabeceira.
(Do livro “Fronteira”)
Meia Tarde
Para além do vidro,
uma claridade morrente
que insiste
em inventar no rasto
do nosso sono derramado,
um brando entardecer
de janelas.
(Do livro “Dez”)
Doce Revolta
Todos os dias se envenenam Sócrates.
Todos os dias se crucificam Cristos.
Todos os dias se fecham teatros para abrir circos.
Todos os dias se gaseiam inocentes.
Às vezes ao longe, outras defronte de nós,
todos os dias olhamos para isto,
enquanto comemos o nosso croissant.
Aprendemos a viver assim.
Aprendemos a dormir assim,
esperando acoitados
que os deuses da fortuna não se lembrem de nós.
Dia infinito
Sabemos que só temos este dia,
por enquanto.
Ele será a luz e as trevas,
o maná e a fome,
a esperança e a angústia.
Sabemos que só temos um dia por dia,
uma rumorosa volta em torno do universo.
Dancemos então.
Parado
Insone e atento
aos reflexos nas vidraças,
aguardo o instante
em que o ribombar do trovão
ou tão só a notificação digital
dar-me-á o sinal que o mundo mudou
e eu não.
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Via Láctea
Um cão azul chamado semiótica.
A inquilina da leitaria antropológica.
A fila de automóveis do medo.
As gravatas do sucesso poluente.
O amante do amor da vizinha.
O cheiro da mercearia anónima.
Os edifícios vestidos de tempo.
Um arbusto com perfil sexual.
O O’Neill a sorrir de desgosto.
O lixo do androide bancário.
A rua … O povo … Portugal.
(Do livro “Dez”)
À noite
À noite,
Quando me deito
Escolho um sonho entre as lembranças
E construo com ele o tal mito
Em que acredito ser eu próprio.
A origem
Nada do que escreves é teu.
Tudo se afasta e retorna
como o som ofegante
de quem respira cansado
de fugir.
Se ainda não sabes ao certo
de onde te chegam as palavras,
abriga-te, então.
Vais ter de esperar
para saber se vais ou vens
da nascente.
(Do livro “Fronteira”)
Ilustrações: Alfredo Luz
Luís Palma Gomes: nascido em Queluz, no ano 1967, Luís Palma Gomes é poeta, dramaturgo e engenheiro. Estudou no Liceu de Queluz e depois na Faculdade de Ciências em Lisboa. Depois de publicar poesia no DN Jovem e Jornal de Letras, durante a sua juventude, entra para o Teatro Passagem de Nível na Amadora, onde interpreta o papel de D.Pedro I na peça “Pedro, o cru” de António Patrício – interpretação reconhecida pela crítica. Vence alguns prémios de poesia em Portugal e no Brasil. A carreira profissional numa seguradora afasta-o durante duas décadas do teatro e da criação literária. Aos 47 anos, é diretor de informática de uma seguradora, quando perde o emprego depois de trinta carreira. A sua vida muda de forma brusca: regressa ao teatro, como ator e autor residente do grupo amadorense; ao mesmo tempo, começa a dar aulas no ensino secundário. Em paralelo, reinicia a sua vida literária.
Uma resposta
Bem-vindo, amigo. Que seus versos fortes tragam luz num dia infinito para esse site que gosto.