A CHUVA : Geovane Fernandes Monteiro

Ilustração: Willian Turner

Não, não na pré-estação. Sons de tosse interpretavam não apenas a vizinhança: o fevereiro de torrentes e de vozes guardadas atravessando o oitão. A casa encolhia, um suspiro simultâneo ao arrepio inundava-me, os pingos mínimos venciam o telhado. Uma mariposa me olhava com as asas. Havia muito estivera queda; o grudar das patinhas sôfregas na parede úmida parecia o único objetivo. Eu temia sua forma de vida tão dada à morte. Em instantes, a casa seria um arranjo da chuva. Chovia… A laranjeira obedecia à ventania agreste. Vê-la dançar dava uma saudade sem recordações, uma coisa apertando o peito sem reprimi-lo, um desejo bom e sem designação. Eu começava a nutrir uma fé sem alvos e todo o céu despejava água, calava o mundo. O mundo, no meu cercado de cerração, apontava a atmosfera da vizinhança, a que um longo silêncio beatifica lençóis e casacos. O silêncio de família eriçada dizia a harmonia das casas. Da janela, eu começava a tocar a água da bica e, a um gesto de aguadeiro, esticava a mão cada vez mais branca, engelhada e sentia o terror maravilhoso de viver.

O dia escuro se somava ao tamborilar da chuvarada, permitia de si uma passagem sempre renovada por fios de água. Da porta entreaberta, meu olhar viçoso, as plantas do alpendre fertilizadas, frouxas, onduladas. Violência e alegria preparavam um horizonte cambaleante. Havia uma comunicação íntima entre água caindo e correnteza: o relevo raivoso dissolvido em queda d’água surgida a capricho do tempo. O resto, desabrochar de formas de vida a fugir de relâmpagos e trovões, dobrar de ossos em suspiro primitivo. O mundo paralisado; nada
escaparia ao estado único de coisa molhada ou de coisa com pretensão de não se molhar. Essa última condição expressava a maior conquista humana. Num exame de porta fechada, meu subterrâneo se protegia não de rejeição corpórea, mas de uma tão fácil enchente apertando meu corpo — liberdade abafada. Tempestuoso, se
lançado para fora e já ensopado, eu surgiria quando excluído, esqueceria a difícil tarefa de quem acordou e não se quis levantar. O cheiro de terra molhada exalava mais que um aviso de agasalho. Antes, uma vontade de avançar sobre o terreno restringia o corpo à vulnerabilidade da alma. Queria o quintal, para aportar-me:” Vou chover!” E os pardais rápidos validavam esconderijos, pombos engrossavam a plumagem para gozarem o frio, secos, nos vãos dos telhados. “Vou chover!” diria sob uma vontade ainda desprovida de predicados, sem galochas atrás do extinto azul do céu, a liberdade na consagração do acaso, o vento forte feito amor sem promessas. “Vou chover!” diria em desespero aprovado pela confiança, em alegria sem saída. O olhar fixo, embora fechando e abrindo, abrindo e fechando, o olhar fixo das galinhas gozava o próprio alheamento e dava ao pé de goiaba um silêncio de poleiro. “Vou chover!” diria ensopando palavras cheias de silêncios corajosos, a mansidão e o sossego de um marulhar. A quem chove o prazer antecede o seu gesto.

Ao abrir a porta do quintal, num embalo ribeirinho, desafiei a estação e naufraguei numa bondade triste, na falta de desafio por eu ter me empurrado sem tempo de aviso, na vastidão sem ribanceira, anonimamente atmosférica — de pântano e estilhaços camuflados na própria fração em correntezas, no lábio duro, vago no rosto, no rosto antes de mim lançado ao ambiente glacial. Uma velocidade de marujo sem tempo de rever-se. Queria o desafio de ter que enfrentar a falta de enfrentamento, a entrega ostensiva, a ponto de a rapidez converter-se no poder da chuvarada! … As respostas foram tornando-se a própria reação corporal. A inércia das coisas constituía um modo de arrepio. A única probabilidade compreendia as nuvens escuras chovendo. O aguaceiro se responde no barulho mudo, na vitoriosa falta de luta ao cair! Alagado, sob o cachoeirar de bicas, uma vida naval me açoitava as fibras numa súbita frescura estúpida e deliciosa. Já no meio do quintal, ao vento cortante, habituado com o que não sabia definir, tornei-me o outro de mim em estado de oceano. A casa enevoada, incerta entre os fios de água, sustentava-se em reverência à tempestade. Já podia avançar mais um pouco. Andava em círculos, batizado, sob a queda das gotas, o olhar submisso, sério e tranquilo para o horizonte
abandonado pela própria abundância. O fantasmal movimento das árvores e o vento terrivelmente frio e libertador faziam-me ter amor ao soçobrados, desejar compartilhar meus bens e minha esperança. Uma vontade de pedir perdão se somava à de distribuir trigo aos miseráveis. O comissário anunciando o ancoradouro, chapinhando para dividir remanso com os que vão atrás de mastros de navios, de salva-vidas. Encharcado, tive um estado de graça de quem sabe exclusivamente se submeter. Por algum obscuro ânimo, o quintal de enxurrada oferecia uma paixão forte e sem esclarecimentos, como um abraço inesperado, desconhecido e bom. Água é sempre um começo. Turvas, pastosas, cristalinas! Formas de marear os olhares mais definidores. Também o rio, o mar, os lagos, as ribeiras, o poço, a lama, o matar da sede, o homem; simplesmente sem ser coisa alguma. A mesma das nuvens, e logo se esconde na própria amostragem, fiel exposição. É preciso a sede para cada gota ressurgir. Chovia, chovia… Se eu abrisse a mão, sentiria o esforço inútil de quando fechada. Água é salvação, salva ou não, por apenas seguir declives. Ela não se molha. Mesmo num tanque de concreto sem fenda, há ainda liberdade: passa a existir apenas para si. Um vinco é pista falsa. Tocá-la seria efetivar uma nascente; consumi-la, tentar a mesma da mão fechada. Noutra sede se liberta há milênios das alturas. A expansão de um pingo é o maior alcance. A liberdade está no cerimonial de gotas escorrendo friamente dadivosas.

Mas afinal a chuva passou a cessar. Outra vez os respingos estragavam surpresas. Há séculos, súbitos até o homem, escuro em volta de formigas voadoras, regressar à morada, onde o dia a dia escorre, rompe represas de pequenos filetes de água. Com os pés pesados de lama, o medo de perder a hora dos compromissos. Realizar qualquer cotidiano em tempo chuvoso passa a garantir o que convenientemente chamo de coragem. O teto volta a ser luta concluída e guardada; a fonte de água fresca, o medo que sofrem em meu lugar. Nos respingos, a lembrança escondida de muitas vezes ter levantado âncora numa garantia de enseada: o agradecimento dos companheiros emprestava a meu prumo um tom de vaidade. A garoa escorria em meu corpo trêmulo e a salvo. Eis o cercado resistindo, o chuvisco cessando, respingos atravessados por impermeáveis jaquetas, capuzes e sombrinhas; em vidraças, gotas espremidas escorriam como lágrimas fáceis. O calor da terra paralisava os negócios da chuva. Nada mais se refugiava, pescoços esticados no limiar de janelas entreabertas, como se viver fosse apenas um hábito de salvação. Acabei não me restando, qual uma andorinha perdida na revoada, um náufrago no cais. Âncora é levantada num impulso de bondade cômoda enquanto a alegria for minha força particular. A força de quem, ao navegar atrás de um madeiro, justifica a necessária e aprovada salvação individual. Já agora o forte alicerce da casa desculpava minha ausência. Eu a construíra sobre a rocha para poder fugir da vivenda por algum instante. Acometido por um resfriado, difícil a tarefa de reconhecer a própria sinceridade. Sob a resistência do teto construído merecidamente, não precisava de coragem, já não queria outra chuva. Sem mais demora, o mundo na esperança de toldo. Marcas de inverno confusas nos primeiros indícios de vida enxuta. A vida, uma virga, espalhou sementes no subsolo. Os filhos cresceram sobre o concreto, banhados de chuveiro, atentos ante o para-brisa e programaram uma pescaria: dia de sol.

Geovane Monteiro é autor, dentre outros, de Paradeiro (contos)

 

G. Monteiro, natural de Água Branca / PI, tem formação em Letras – Português e Pós – graduação em Linguística Aplicada, ambas pela UESPI. É autor do livro de contos Paradeiro (2016) e de poesias O exercício do nada (no prelo). Integra várias coletâneas, como Poesia Tremembé (2021), Cacuá – Antologia de Contos Piauienses (2020) e Antologia de contos bilíngue (português e espanhol) Palavras sem Fronteiras (2016). Junto com o contista e romancista João Pinto, foi fundador do espaço literário virtual Contos entre paisagens (2020 a 2023).

Respostas de 3

  1. Lembro bem os momentos em que forjei uma linguagem para A chuva! O ambiente, o relevo mental foi minha primeira e antiga casa onde nasci e vivi com intensidade até os 16 anos de idade! Se me perguntarem o porquê de eu fabular todo um processo dopaminérgico de uma grande enxurrada naquela casa de parede geminada, calçada alta, duas folhas de janelas avolumando a porta de acesso a todos meus sonhos e devaneios, se me perguntarem o porquê, a resposta é sempre exata e segura: eu não sei. Não saber, na verdade é minha ferramenta, meu café na mesa de leitura. Leitura de pouquinhos autores aos quais me apego, leitura da experiência, vivida ou não. Quase nunca vivida naquela chuva de batismo, de fertilização, de pancadas de águas vindas e idas, idas e vindas de Amaitês distantes em suas migrações terrenas. Talvez saber não saber. Já dizia Ferreira Gullar: "é que só o que não se sabe é poesia.".

  2. "é que só o que não se sabe é poesia." é perfeito, poesia é o que não está estruturado em sistemas e arranjos racionais, talvez por ir além, na dúvida, naquele sensorial que toca o divino.

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