5 poemas de Chico Lopes


Ilustração : Edvard Munch

AREAL DA NOITE

Areal da noite, enigma sem causa,
turbilhão de sono, tumba de asas,
quero ser o mais secreto atalho
lambido de sereno, o mais discreto
dos regatos calmos, cantando baixo
á minha solidão, em acalanto,
esta contida ária quase pranto.
Que os outros não me ouçam,
que o próprio som me seja
involuntário, fácil, como o rio
de que emergi sem nunca ter pedido
a bem de um mundo escuro e gratuito.
As facas se entrecruzam, são dispostas
espadas sobre a seda, e o desenho
da nobre solidão claro se torna –
é mão jazendo à espera na bigorna.
À espera de nascer, navego escombros,
indeciso fio entre negror e aurora,
meu sonho é um vislumbre de estar vivo
e reincido em erros muito antigos.
Andaimes da noite me sustentam, fluídos,
e apontam para céus não percorridos.

LEONOR                                       

Calma a cidade, vagaroso o vento,
cessaram os automóveis, raros
os passos de gente, nada
que sobressalte o gato na varanda.
Calma a rua clara, vagas
tosses à distância, e algas
de sossego denso enoveladas.
Mas Leonor não dorme.
Sossego é para roer unhas,
depois cobri-las com merthiolate,
sossego é um transtorno indizível,
dor de mil segredos, cativeiro
do sonho emudecido à força.
Sossego é o que ela menos quer:
Que as algas se desatem e o Mar derrube
muros e gradis, jardins de manacás.
De dia os olhos comem o que não podem,
          ah, se eles fossem língua e dedos!
– o moço do armazém, pedreiros e padeiros,
os madurões da praça, bancários ou roceiros,
o mundo inteiro é macho e é alheio.
De noite é bater rua, circular
do jardim ao cinema e daí ao jardim;
nenhum olhar que a salve, ninguém
que lhe pertença um pouco, por favor?
Fazer? É moça circunspecta;
não vai, desesperada, oferecer-se.
Resta-lhe o piano da sala,
mas os vizinhos detestam música.
Um dia a casa inóspita desaba,
um dia um furacão leva a cidade,
um dia o chão se abre e engole os vivos
que vida propriamente têm-na pouco.
Um dia ela irá, noite fechada,
decapitar o gato da vizinha
e jogar bola a todos os cachorros
que estão vivos demais, sempre latindo.
Dolores engoliu soda cáustica,
Mercedes engravidou do viajante
e, precavida, nunca mais foi vista.
Aninha envelheceu e lê a sorte,
Beatriz é vesga, mas a ela
coube continuar a ter desejos,
subir e descer rua, apressada
feito tivesse rumos muito honestos.
No quarto há um bolor insuportável,
a penteadeira, os objetos gastos
por uso unicamente seu e só.
Ela se esfalfa em desfazer lençol,
em recortar uns homens de revista –
de preferência os de bigode farto.
Ah, relvas que nunca tocou,
peitos, espaldares, pernas
e o estupor sublime, eixo do mundo!
As horas de reclusa, incontáveis,
o forro, o cuco, a raiva, as lagartixas.
Não enlouquecer de tanta calma,
não perder o juízo, como Aurélia
que saiu de camisola a chamar homem.
Preparar os doces, lecionar bordado,
triturar a ânsia em mil lidas diurnas.
A cidade é quieta, seu silêncio
é um surdo espetar de pregos sujos,
o tétano que lerdo se aprofunda.
No olho do angorá brilha um demônio,
ela o enxerga, como enxerga sempre,
desterros e suplícios atrás das portas.
Não se enganem com as plácidas cortinas:
ocultam almas penadas em vigília.
Pálpebras e atenções cedem à hora,
os sons já se recolhem, morrem gestos
e o vento sopra litanias débeis.
Choveu, o jardinzinho sonha fresco,
os brincos de princesa, as esponjinhas,
arrudas e alecrins respiram lua.
Antiga simetria sem um só desvio,
segura fixidez, tudo exato e justo
para o justo ou o injusto descansar.
Mas Leonor não dorme
nem nunca dormirá.

PRESSÁGIO

Uma tarde escura, de nuvens roxas,
a leve opressão do ar inquieto, facas
dormindo na gaveta entreaberta.
Alguém vaga no quintal, soprando gaita.
É um tio solteirão, que sofre de úlcera
e come goiabada escondido.
Temo pela noite que virá.
Alguma coisa que se move densa
no milharal, nos pés de erva cidreira;
velho fantasma amorfo, mas familiar,
e, Deus, eu temo tanto ver seu rosto,
um pesadelo só adivinhado!
As nuvens roxas se dissolvem em negro
e o escuro adensa o espesso do desassossego.
Terei que resistir, terei que relutar,
terei que dizer não e aí capitular,
aqui é terra firme, lá fora o Mar.
Todo o pomar é um sonho verde escuro,
esse perfume, o laranjal profano,
um jato de urina intenso sob a lua
e a impaciência de um corpo à espera.
Ah, os pés que esmagam folhas secas,
os dedos que apertam outro cigarro!
Aprendo que os tigres deslizam quietos,
aprendo que o sangue é correnteza surda,
entendo o canto-hieróglifo das corujas,
entendo a servidão, seus rituais.
Não poderei ficar onde macias
e úmidas aranhas nidificam;
terei de abrir passagem entre as teias,
desembocar no centro do alçapão de carne.
E os sinos da capela irrompem para a missa
e as vozes da família alternam-se na sala
e há iluminação em quartos que não são o meu.
Descer é inevitável; imperativa,
a sombra trêmula e hostil convida.
Selar o pacto com o quintal furtivo,
traçar na testa o estigma de prata.
Alguma coisa que se move densa
pela ramagem negra, pelo chão lunar.
Os primeiros passos tácitos se deram.
É assunto de amor
ou de matar.

ELEGIA

Antes era o riacho

e tinha um som claro,
água em meus lábios.
Eu era largo, pequenino,
eu era sino.
Um pássaro azul muito leve
vinha pousar-me na bica;
o vento Oriente o trazia.
Eu era farto, ilimitado,
eu era alado.
Ah, vigiar andorinhas,
perder guarús entre os dedos,
na língua estourar amoras,
involuntário das horas!
Hoje as asas são tropeços
e o campanário só trina
os tombos e os inventários.
Largas bandeiras de luto
me sentenciam: és adulto.
Resisto: não vou morrer
entre véus e aspirinas
nem abençoar chacinas.
Mas a procissão me arrasta
e a recordação não basta.
Que não há pássaro ou brisa
senão em desejo e, turvo,
sem seus cardumes esquivos,
o riacho não é doce
e a minha língua travou-se.

ALDEIA

O irmão da rua, seu gesto morto
contra a tirania do céu azul.
As ruas de pedra branca,
a branca ausência concreta,
as casas de pedra antiga,
velha Mu irredutível
com seus telhados cobertos
de antenas de televisão.
A calma idiota segrega
alguma coisa inumana,
pequenez radioativa
que consola e petrifica
e faz com que se adormeça
sobre um calor de excrementos,
ignorando a evidência
de afogamento.
A cloaca é morna, acomoda
e devora inquietações.
Nela a saudade da ação
é um bocejo infinito.
A força dessa irrisão
é tamanha e tão precisa
que não se vai para além
de certas ruas e praças
pelo medo de perder-se
o fio de alma mantido
na hipnose da rotina.
A identidade erigiu-se
pedra por pedra em segredo,
vago heroísmo e suspiro,
e fez-se montagem alta,
torre débil, minarete
ameaçado na base
pelas brisas da mudança.
Ali mais irmãos da rua:
só lhes resta vaguear
em vias de eterna sede,
punhos, dentes cerrados,
bêbados, olhos espessos
de cachaça e abandono,
em aceitação raivosa
de uma paz que não cria.
Outros cantaram teu ópio,
a calma de eremitério
onde se perde o mundo,
mas a alma não se salva.
E há, sem dúvida, beleza
nessa quietude de adeus,
nessa lua depurada
que brilha alta, asiática,
sobre as casas, formas densas,
que, ao toque da prata leve,
parecem poder levitar.
Eu canto a tua miséria
de língua atada, cansado
de me cansar contra nada
e investindo meu ódio,
o melhor de minha dor
na aposta de poder
um dia deixar teus muros,
teu silêncio canibal,
tua sedução opaca,
abismo de sono antigo,
anonimato sem Deus.

Os poemas são do livro  Caderno Provinciano (Editora Patuá,2013)

Autor do livro de poemas Caderno Provinciano, Chico Lopes (Francisco Carlos Lopes) nasceu em 6 de maio de 1952 em Novo Horizonte – SP. Publicou três livros de contos – Nó de sombras (IMS/SP 2000), Dobras da noite (IMS/SP 2004), Hóspedes do vento (Nankin Editorial/SP, 2010) e o romance O estranho no corredor (Editora 34/SP/2011). Em 2012, publicou seu primeiro livro de memórias A herança e a procura (Ler Editora/Brasília). O livro O estranho no corredor recebeu um Prêmio Jabuti na categoria romance em 2012. Caderno provinciano é seu primeiro livro de poesia, reunindo poemas escritos em Novo Horizonte e Poços de Caldas entre 1980 e 2003.  Reside atualmente em Brotas, SP.

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