Uma aldeia… aparentemente uma cidade moderna, até louvada por muitos como modelo de tanta coisa, asséptica, regida na pandemia da melhor receita de tratamento e condicionamento. Movida a um povo de alma polaca, sisudo, desconfiado, carrancudo, um surdo obedecer sempre pronto a irromper, a qualquer real contrariedade, em um enfrentamento brusco e seco. Conhecedores uns dos outros, os de lá e os de cá, seja a linha divisória ideológica, social ou de faixa de poder administrativo ou econômico, procuram manter-se dentro limite do que seria a lei e a ordem. Pelo menos aqueles que podem, minimamente, exercerem a função de cidadãos. Os à margem, como em qualquer lugar do mundo, ignoram tais limites desde que em zona de não cerceamento. Mesmo assim é uma cidade aonde se viu moradores de rua de máscara e acampados (barracas iguais) na ideia, algumas vezes fantasiosa, de manter o vírus longe dos que se julgam uma elite (não informados de que habitam com outros o mesmo lugar no espaço).
Em um país de carnaval é um reduto do natal, orgulhando-se de seus coros, presépios, enfeites, orações, modulações um pouco medievais e contidas no cristianismo inoperante da puerilidade. Não compreende a orgia do ano novo, silenciosa aldeia com sua meia dúzia de fogos, saudosa dos bons dias do dia a dia, restaurantes e bares embalando previsíveis recitações de meia lua, horizonte brando, frio nos copos que não se fartam, só derramam de forma previsível um líquido contínuo nos modos operários das tarefas de escritórios, comércio, escolas, faculdades. Nenhum augúrio será ouvido para além de seus belos parques, suas estações de meio tom, a disciplina inevitável do seu ritmo claro, algumas vezes lúcido, mas, antes de qualquer outra provisão ou porventura, sempre restrito a si, contido nos muros invisíveis da névoa nem sempre branda que a estaciona no meio céu da vida pressentida como real se organizada.
Se no Brasil o requebro das cuícas e a alegria das mulatas é o prefácio de sua exuberante musicalidade, em Curitiba uma completa ausência, até uma verdadeira essência, parece proibi-la de juntar termos e sequencias para além das vocalizações colocáveis em um livro, na cena de um teatro, nos saraus quase vazios dos seus muitos poetas. É nesses saraus que, agitados nas nuvens de suas rebeldias ou parodiando as formações de pseudo academicismo de séculos passados, os curitibanos, enfim, soltam suas vibrações monocórdias/metálicas de passadas configurações. Românticas, de desarranjos de alma e enquadramento em passadas gerações de vanguarda no primeiro caso, vestidos ao modo de 1900 e muito pouco na distribuição dos diplomas e troféus do pesado cansaço da poeira de alguns recitais, no segundo caso.. Muito frequentes em diversas modalidades de atividades culturais esses seres poéticos e festivos (alguns se julgam verdadeiros combatentes das letras e das suas rendas) nos recitais contraem-se, repartem-se, sorriem (pasmem), cumprimentam-se (é verdade, com a eterna desconfiança aos que não conhecem, mas, enfim), descontraem, algumas vezes até se regam em cerveja ou vinho. A maioria vai para casa cedo e nunca se sabe se para rezar, dourar os rituais da morte ou relembrar os grandes feitos do dia.
É a terra dos que não foram? Dos que escutam os ruídos do futuro apenas pela superfície, não empoeirada pois assepsia é um credo comum, dos seus modos e vertigens? São apenas frios, matutos de oitava maior arrancados de terras operárias ou agrárias para o concreto e suas leis? De alguma maneira adaptaram o desatino do ritmo moderno e procuram enquadrar os que julgam fora do círculo.
Dividem-se, com ordem, pasmem, em diversas classes na lida das letras. Os oficiais ou quase, seriam louros de aparência ou alma, maneira corteses, enviados a algum pátio de igreja antiga como esculturas de bom canto, boas regras gramaticais, corpo encorpado de sufixos e prefixos, um conhecimento árduo batido nas academias, uma polidez distante. Os depois, ou quase os quase, são, não a corte, mas, os que se legaram o legado, o arguto da continuidade, os nomes dourados nas bibliotecas e nas lendas. Tentam construí-las laboriosamente, invadindo, se preciso, os cafés das bibliotecas, rearranjando livros, distribuindo os seus, impondo, de fato, regras, condições, permissões. Dir-se-ia que tais comportamentos são usuais em vários setores da arte dos que se pré destinaram à fama, à cama, à mesa dos rituais de benção e transmissão. Em todo o mundo é na segunda fila que se vence para o amanhã, aonde se libera o ardor da guerra, o grito da ambição. Na história os nomes dos bem nascidos quase sempre só enfileiram uma dinastia de fundo, algozes ou patrocinadores dos heróis. Mas, na vila das araucárias a turma do bate forte tem um corredor e um plantão. No amancebamento constante de cama, diversão, operação, favores, convites, livros e toda a parafernália pobre que acompanha as facções de edição e visitação da literatura brasileira, editores, ativistas, jornalistas e bossalistas resguardam interesses, que se são também seus, visam principalmente os daqueles outros, que permanecem na sombra de toda essa alquimia. A turma que se predestina aos arquivos e monografias futuras pode até ser morena na alma, mas, tem lá seus louros. Estes o são realmente só de pele, não tem as mesmas cátedras e, se carregam pretensões de genealogia, precisam bater e rebater continuamente seus possíveis saberes e talentos. O fazem na sombra enquanto a festiva turma de aparições põem em cena os coadjuvantes, idem istas, editores, poetas, algumas vezes os verdadeiros talentos, felizes por acompanharem a movimentação toda.
É de virtuose consentida que em primeiro plano, nas capas, nos palcos e nas movidas artrites estarão os homens, vozes graves, batida lenta, camaradagem, circulação entre A e B. Mulheres, muitas vezes as melhores poetas, só quando não tiver mais jeito. Quando o esforço de lhes obstruir o caminho por qualquer medida, receita ou enganação tiver falhado. Ainda assim serão, de forma lenta e cautelosa, apagadas, restituídas aos seus princípios. As irmãs de condição e gênero não serão a pedra no caminho, estarão ocupadas na mutilação de si mesmas, empoeiradas na névoa que por ali se sedimenta, entrevadas na inveja às melhores, submissas às talentosas do mau agouro ou da patrulha, receosas desse pequeno mundo de enfrentamentos, escondidas e afiadas para o eterno canto menor.
JANDIRA ZANCHI