2 contos de Carla Dias

Ilustração: https://www.deviantart.com/ridgeviewxkid

CONTENTAMENTO

Que passo, então, a desejar reticências em cada certeza, só para despir a perfeição da sua perene doidice de se achar definitiva e para lá de necessária. Não aqui, onde engrenagens são as mãos ao ar, tentando colher a alegria de se aprofundar no vento, como que interagindo na criação de uma jornada de carinhos. Não aqui, onde silêncio é prefácio de cantoria e as pessoas não são apenas pessoas. Elas também são companhia, das que apreciamos feito vinho, café fresco, pés nus correndo pela casa em busca de alvo no qual dançar. Que passo, então, a ladear a coragem de enveredar pelos mistérios da felicidade. E ainda que ela se apresente como orgulhosa autora dos melhores momentos da minha vida, eu a encaro silente, lembrando-me daquele momento imperfeito em que, antes de a felicidade chegar, eu me sinto melancolicamente humana.



DAS REZAS E CHÁS

O avô benzia gente para livrar de medo, soluço, mau-olhado, falta de sorte. A avó cuidava dos chás, de tudo quanto era gosto. Era cada perfume que deixava o nariz dela feliz que só. Tinha para livrar de dor de estômago, cabeça, até de tristeza. Para parar de fumar, para dar barriga. Ela gostava de alisar a barriga das meninas. Pareciam luas cheias. O avô sabia rezar tão bonito. Ela entendia um nada daquilo tudo, mas o jeito que ele dizia palavras, com pausa tudo combinando, aquilo deixava os olhos dela cheios d’água. A avó tinha um talento lindo para costurar roupa de festa. Ela beijou menino pela primeira vez, usando vestido requentado. Era da bisavó, de domingo. A avó o fez dela, para beijo de sábado, durante a festa de Santo Antônio. Soubesse, teria decorado, com o avô, umas palavras para rezar. Teria bebido o chá da avó para amor descarrilado. Teria permanecido lá, no barraco de chão de terra batida, onde a felicidade acontecia, contrariando a tristeza.



Carla Dias nasceu em Santo André (SP), em 1970.  Sol em Escorpião. Ascendente Libra. Lua em Câncer. Poesia no diariamente. Com o Transformação foi classificada no V Concurso de Poesias de São Caetano do Sul (SP). Inquietou-se. Misturou a poesia com a prosa e publicou o Azul. À coletânea Encontros ofertou o conto Queda e participou do Poesias Brasileiras com o Arquétipo da Rebeldia Desenfreada. Há quase duas décadas, adotou o site Crônica do Dia, e lá continua na função de cronista.
Cultivou a paixão pelos tambores e se tornou baterista. Ao lado de Vera Figueiredo, vem produzindo o festival Batuka! Brasil. 
Publicou os romances Os Estranhos, Jardim de Agnes Estopim, e o livro de contos O ObservadorLivro das Confissões é sua primeira obra exclusivamente de poesia.

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