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foto/colagem: Francisco Gomes |
“Entendo que poesia é negócio de grande responsabilidade, e não considero rotular-se de poeta quem apenas verseje por dor-de-cotovelo, falta de dinheiro ou momentânea tomada de contato com as forças líricas do mundo, sem se entregar aos trabalhos cotidianos e secretos da técnica, da leitura, da contemplação e mesmo da ação. Até os poetas se armam, e um poeta desarmado é, mesmo um ser à mercê de inspirações fáceis, dóceis às modas e compromissos.”
Carlos Drummond de Andrade
O escritor, poeta e pintor Henri Michaux disse que, “Em poesia, vale mais sentir um estremecimento a propósito de uma gota de água que cai em terra e comunicar esse estremecimento, do que expor o melhor programa de entreajuda social.” E continua: “Essa gota de água provocará no leitor mais espiritualidade do que os maiores estímulos à elevação de sentimentos e mais humanidade do que todas as estrofes humanitárias.” Isso mesmo! Cito Michaux porque a afirmação dele vai de encontro com o que penso sobre Poesia. E, instantaneamente, ao ler Patuá (1ª edição, Editora Coralina, 2019), o mais recente livro de poesia da mineira Mell Renault, fui direcionado às palavras do belga naturalizado francês e tive espasmos catárticos. A chama da esperança – sem exageros, quase apagada, ganhou força e brilho num exclamativo “Isso é Poesia!!!”
Em tempos onde uma grande parte dos poetas mostra-se, não sei se in ou conscientemente, voltados e preocupados em fazer poemas de cunho político-partidário, beirando o panfletário; em tempos de sensacionalismos e banalizações, em que a contemplação e o espanto mostram-se cada vez menos presentes… É emocionante e indescritível, para mim, e confesso sem culpa, ler um livro de poemas transbordando Poesia, visto que muitos contemporâneos têm esquecido a Poesia em prol de causas sem efeitos. E Patuá transborda Poesia. Mell não faz poemas. Mell materializa Poesia! Materializar Poesia é muito mais do que ofício, e a Poeta sabe bem disso quando afirma “Saber da pedra / destino / sua sina rupestre / marcando / o tempo do caminho.” Há tanta beleza no que Mell constrói, que é impossível não concordar com o Kandinsky quando ele diz “Só é belo o que é necessariamente belo.” No universo da arte, é nisso que acredito. Ah, o belíssimo trabalho gráfico, tanto a capa como a diagramação, potencializam a Poesia materializada pela Poeta. Impossível, para mim, ler um livro e não citar tais especificações, até porque um belo trabalho gráfico de um livro nos mostra que a Editora tem o cuidado e zelo, não só com a obra, mas respeito pelo(a) autor(a).
A poesia de Renault é água, porque é fluida e transparente. Mas advirto: transparente para nos mostrar o quão profundo é o fundo do rio de sua poética. Também é lágrima e chuva, porque é sentimento em todos os sentidos; é fogo, porque é luz, sol e aquece a alma e queima os desavisados; é ar, porque traz consigo o Sopro do Inesperado no vento do bater de asas no voo das palavras; é terra, porque é
“no fértil terreno
que brota
vida
/ raiz /.”
Seguindo o itinerário da obra, somos guiados pela Poeta cabocla em sua canoa ancestral: a disposição e ritmo dos poemas é rio perene. É possível, durante o passeio, observar e vislumbrar nas margens as vivências – Patuá carrega a infância (pureza) e a velhice (sabedoria) eternamente tenras nas experiências do viver, principalmente no que diz respeito ao “aprender-descobrir” com a natureza o Aprender-se e o Descobrir-se como Ser integrante do Todo, onde “No fino do existir, desobedecer à delicadeza da flor e brotar árvore frondosa na sombra da alma.” E aí, vem a frase do Bachelard para abraçar os versos da poeta: “Nossa alma é uma morada.”
Mell Renault vive suas raízes preservando a pureza de simplesmente ser. Ser. E estar. Estar. Está em constante comunhão com o Nada: “O profundo em mim é o Nada.” Esse Nada é o Tudo que a Poeta busca. E para isso, é necessário “Viver no enlace de cada trama, em cada teia, escalar aventura.” É uma necessidade existencial estar em todos os lugares e coisas, e ser lugares e coisas dentro de si mesma. Só assim, para a Poeta, é possível sentir o Nada. E esse feito só é possível através da “infância imóvel”, no dizer de Bachelard, guardada no imaginário. A Poeta está em constante devaneio e catarse ao experenciar o Nada, pois tudo fica claro ao “silenciar os olhos para falar o coração”, visto que, conforme Bachelard, “A conquista do supérfluo provoca uma excitação espiritual superior à conquista do necessário.”
Patuá está muito além de ser um mero balaio ou cesto de taquara, palha e vime como sugere o dicionário. Patuá, aqui, possui a magia da ancestralidade carregada de ritos e gestos através dos quatro elementos naturais – terra, água, fogo, ar –, que permeiam toda a obra. Não é à toa que Bachelard acredita ser “possível estabelecer, no reino da imaginação, uma ‘lei dos quatro elementos’, que classifica as diversas imaginações materiais conforme elas se associem ao fogo, ao ar, à água ou à terra.” E assegura que toda poética deve ganhar componentes de elementos naturais, essenciais para a Poesia. O poema precisa encontrar a sua matéria, ou seja, seu elemento material que lhe dê sua substância.
Em Patuá, os quatro elementos materiais são presentes. Ao longo da obra, é perceptível a materialização. Por exemplo: “O sol / que arde / desbota o / azul dos olhos”, “Na transparência / da gota, / lágrima / orvalho / chuva”, “Pipas / agitam / o céu / enquanto / faz / cócegas / o / vento / na pele”, “Sonhar o chão / raiz / vegetação rasteira / lugar imenso / do brotar”. Os poemas são carregados de saberes, sabores, texturas, cheiros e cores. É um livro de encantos, onde o lirismo reside e fixa raízes na delicadeza do existir dos movimentos e gestos naturais das coisas. Em outras palavras, os poemas são leitmotiv; fios condutores que nos levam às particularidades da Poeta em memórias da infância convertidas em delírios poéticos: resquícios e rastros de vidas.
Li e reli Patuá. Aliás, leio cá dentro continuamente e, ao final de tudo, temos a sensação de uma folha-pluma caindo-flutuando em direção ao Atingir. Saímos do livro com a certeza de que Patuá não é apenas um livro de poemas, mas um amuleto repleto de pulsações que a Poeta Mell Renault carrega no peito.
Francisco Gomes (Campo Maior, 1982). Vive em Teresina. É poeta e músico. Além de obras inéditas e em construção, publicou 4 livros, entre eles: Poemas Cuaze Sobre Poezias (FCMC, 2011) – 1º lugar na categoria Poesia do Concurso Literário Novos Autores/2008, realizado pela Prefeitura de Teresina – e O Despertar Selvagem do Azul Cavalo Domesticado (Multifoco, 2018). Tem poemas em revistas, antologias etc. Dedica-se cotidiana e arduamente à poesia, num trabalho de pesquisa, contemplação e escrita. Participa de Saraus e eventos literários apresentando a leitura poética “A Verve do Verbo”. Admira a carência orgulhosa dos gatos e a tranquilidade dos jabutis. Ah, adora fígado acebolado.