
Faz tempo não escrevo uma crônica. O gênero exige uma conexão com a realidade cotidiana em sua expressão de existência que, nos últimos anos, tem causado a todos, e também a mim, um profundo desconforto que nos impele ao alheiamento. Perdi, por isso, o laço com os fatos e com os atos, agora que apenas os observo virtualmente, agora que aderi ao grupo dos que preferem mirar o mundo pela janela, como se ele fosse apenas algo lá fora, longe do campo da experiência pessoal.
O mundo, o espaço coletivo do mundo, tornou-se esse solitário hiato desabitado. Até mesmo o dono da tabacaria já não chega à porta, senão por medo de assalto, por resistência à interface com a existência compartilhada com seres reais de carne e osso. O Esteves já não anda por ali, compra suas cigarrilhas online e recebe-as em casa. E quem espreitava pelas janelas do quarto na mansarda já não vê a rua constantemente cruzada por gente, senão em carros.
O lugar do coletivo deixou de pertencer a todos, a uns, a alguém. É agora de ninguém: nem do público, nem do privado; nem do Estado, nem da população. É apenas imenso vácuo de sentido e utilidade que abriga o vazio e a solidão da metrópole, pontuado em toda parte com os dejetos da obsolescência programada pelo consumismo moderno e habitado por seres igualmente dejetados, igualmente obsoletos, que se entocam nas frestas das cidades como líquidos infiltrados nos sólidos projetos de nossa modernidade falida. Sem-tetos, sem-terras, sem-escolas, sem-livros, sem-identidades, semivivos, sempre-vivos! Ocupantes provisórios de colchões fétidos, sofás deteriorados, lonas rotas, os andrajos aos farrapos, as vasilhas vazias de comida e o olhar refeito em cinza. O húmus social no vácuo de um mundo compartimentado e cruel.
De nossas janelas, não os vemos sob as pontes, marquises, coretos, nem nos vãos ou nas valas do chão… Também não sentimos o cheiro da putrefação dessa compostagem humana. E não vemos as chagas, a infecção, o edema, o pus. Não sentimos a imundice com o bafo do álcool anestésico, ou com o falso brilho de algum alucinógeno que transforme fome em delírio de pertencimento a um mundo excludente.
Escolhemos nossas janelas seletivas e selecionamos a versão de mundo que nos deleita ou, ao menos, aquela que toleramos. Exilamos o restante incômodo para o invisível plano do real, a lixeira dos problemas da qual vivemos apartados, lugar onde alguns, além dos próprios dejetados, ainda insistem habitar. Heróis como o padre Julio Lancellotti, no bairro da Mooca, em São Paulo, que está sendo ameaçado de morte, com a fachada de sua casa estampada nas redes que insuflam violência. O padre que ousou, ao longo de décadas, defender moradores de rua, que ousou salvar aidéticos, que ousou ajudar crianças sem amparo. Bendito caudilho da piedade e do compadecimento… como ousou tanto assim e por tanto tempo consecutivo, com sua resiliência de homem santo, como ousou resistir à fome, à peste, à morte e agora à essa guerra? Como ainda ousa tanto e com a vitalidade dos primeiros anos!?
Pode parecer delírio desse velho cervantino, mas o padre Lancellotti, que conheço desde menino, tornou-se um triste e refigurado Quixote dessa pós-modernidade distópica que erigiu o intransponível muro dos encapsulamentos individuais, atrás do qual se garante a exclusão do que não desejamos para nossas curtas vidas. Vãs vidas valiosas demais para desperdiçarmos com essas tolices de causas sociais, direitos humanos e outras mazelas derivadas dos desajustes no sistema que não conseguimos mesmo mudar por nada! E assim, dissociados da pólis e da verdadeira política, anestesiamo-nos e vagamos alheios. Informados, atualizados, mas alheios.
O filantropo religioso, contudo, enfrenta não só a nossa omissão, mas também a fúria daqueles em quem a anestesia não fez efeito e que querem varrer o lixo humano de suas portas, sem implicar causas ou consequências, desde que a assepsia social, tão em voga no tremular da bandeira nacional ultimamente, seja eficiente e execute o banimento do que, segundo a concepção dessa raivosa e vociferante facção, não merece sequer existir. Foi assim que o padre Júlio tornou-se um obstáculo a ser removido, para que tal depuração traga ainda mais valorização ao nobre e caro bairro, já tão revitalizado após o ciclo industrial do século passado. Cabeça a prêmio, no entanto, parece mais do que intimidação para a manipulação do mercado imobiliário. Mas ele enfrenta os dragões e os moinhos apenas com a palavra e a cruz.
O santo guerreiro, com nobre sobrenome de cavaleiro da justa távola redonda, sentou-se solitário à cabeceira quadrada desse nababesco banquete de barbárie. Não propriamente o que ronda sua humilde casa e ameaça sua desvalorizada vida, mas outro bem mais abrangente: aquele que, mesmo que não mate os poucos padres que ainda prestam por aí, prefere que o lixo humano despejado nas ruas continue não sendo visto, nem mesmo pelas seletivas janelas que nos mantém imunes à humanidade. E é justamente a favor da humanidade exilada que, nessa injusta justa pré-medieval, peleja o solitário cavaleiro Lancellotti, Quixote de la Mooca! E nós, em nossa omissão e descaso, não servimos nem para Sanchos de sua luta inglória.
Eduardo Carvalho sempre atuou na intersecção entre Cultura, Educação e Política, tendo emprestado da Comunicação Social as ferramentas para as pontes. Estudou Farmácia e Bioquímica e Letras na USP e formou-se em Comunicação Social na ESPM, licenciado em Língua Portuguesa pela Universidade Nove de Julho. Foi professor, teatrólogo, jornalista, publicitário, assessor político. Desde 2015, dedica-se exclusivamente à Literatura.
Livros Publicados: O Teatro Delirante (2014 – poesia erótica e lírica) pela Editora Giostri; Retalhos de Sampa (2015 – poesia) pela Editora Giostri; Sessenta e Seis Elos (2016 – romance) pela Fundação Palmares MinC;Xadrez (2019 – romance) pela Editora Patuá.
Principais Prêmios Literários (*coletâneas nos prêmios assinalados): Prêmio Oliveira Silveira da Fundação Palmares – MinC, em 2015, com o romance Sessenta e Seis Elos ; Concurso de Poesia de Águas da Divisa MG no 32º FESTIVALE – MinC, em 2015, com o poema Conta-gota ;* 50° Festival de Música e Poesia de Paranavaí, em 2016, com o poema Tempo ao Tempo; Concurso Nacional de Literatura – Prêmio Cidade de Belo Horizonte, em 2016, com o romance Xadrez; Prêmio de Incentivo à Publicação Literária do Ministério da Cultura / Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural / Departamento de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas – 100 Anos da Semana de Arte Moderna de 1922 – MinC 2018, com a peça teatral Evoé, 22!
Participações em Feiras:
XII Bienal Internacional do Livro do Ceará2017 (Centro de Eventos do Ceará, Fortaleza) – Painel Fundação Cultural Palmares. 21 nov 2017, 16h na Sala José de Alencar; Festa Literária de Paraty 2017 (Casa Malê) – Painel Literatura de Afrodescendência. 29 de julho, 11h na Casa Malê em Paraty; Festa Literária de Paraty 2019 (Páginas Editora) – Tarde de Autógrafos de Xadrez – 12 de julho – 15h na Casa da Porta Amarela em Paraty; Bienal Contagem 2019 – autor convidado para novembro de 2019.