Se pudesse, fazia-me de versos: Solange Firmino para Lilia Tavares

Parto Com os Ventos, Lília Tavares: Modocromia Edições, 2023. (Edição revista e aumentada, com poemas inéditos.)

 


Lília Tavares
é uma poeta portuguesa muito atuante nas redes sociais. Publicou vários livros e atualmente é co-autora no Facebook da Página “Quem Lê Sophia de Mello Breyner Andersen”. Este livro em questão é belíssimo. Difícil escolher poemas, pois muitos são longos e difíceis de “partir no meio”, por isso escolhi alguns menores. Entretanto, quem tiver interesse nesse pequeno ensaio, procure a autora no Facebook ou Instagram para saber como adquirir o livro.

 

O primeiro poema da série escolhida parece ter sido escrito em uma nuvem e levado por gaivotas azuis. A metáfora da nuvem indica a transitoriedade da poesia, enquanto as gaivotas sugerem uma conexão com a liberdade. A instrução para “Encosta o ouvido à terra. Escutarás.” indica uma busca pela compreensão mais profunda, talvez uma conexão com a natureza, uma audição atenta ao ruidoso mundo ao redor.

 

 

Escrevi letra a letra um poema numa nuvem.

Passaram gaivotas azuis que o levaram.

Agora ondula no rebentar de pequenas ondas paralelas.

Encosta o ouvido à terra.

Escutarás.

 

O poema seguinte explora a dor das árvores, a solidão dos ramos. A busca por ternura e a recusa no final sugerem uma complexidade emocional. A folhagem, os pássaros e o ninho adicionam elementos tanto de natureza como de acolhimento. A autora tem um livro chamado “A timidez das árvores”…

 

 

Hoje
acordei com a dor das árvores;

estou de pé e o meu tronco sustém

o vazio e a solidão dos ramos

côncavos de espera,

impacientes de ternura.

Quero o bracejar dos pássaros,

ser refúgio dos ventos que me procuram,

tornar-me na folhagem que te abriga,

ser o ninho na tua noite, aberto 

com a inquietação e a serenidade

dos rumores das aves mais tardias.

Não, desta vez não vou.

 

Este poema explora a liquidez da noite nos olhos do sujeito lírico. O farol e a luz da vida cúmplice sugerem orientação. A identidade do sujeito lírico como ilha e barco, e a referência à margem que espera, indicam uma dualidade entre a jornada pessoal e o relacionamento com o outro. A decisão de partir com os ventos adiciona um tom de determinação. (Lembrando que “Parto com os ventos” é o nome do livro.)

 

 

 

Esta noite é líquida

nos meus olhos esvaziados

de rumores e saudade.

Fixo o farol e a luz

da vida cúmplice.

 

Como as gaivotas parto

e regresso

porque este areal é meu.

 

Nem os búzios perdidos

nas águas profundas me podem

chamar com cânticos e brilhos.

 

Sou ilha e barco,

tu a margem que espera.

 

Parto com os ventos.

 

Abaixo, o sujeito lírico expressa um lamento profundo, utilizando imagens marítimas e elementos esculturais. O bote frágil e a escultura de bronze na falésia sugerem vulnerabilidade. O apelo agudo da ave que se procura “sozinha” traz uma nota de solidão. A pergunta final “Ficarei só?” acrescenta um elemento de incerteza.

 

Ilustração: Kay Sage

LAMENTO

 

Adivinho o pulsar da manhã

quando afago a madrugada

com os meus dedos de lua.

Assim sinto os dias:

vagas a lamber a praia longa

sem nos levar ao porto.

 

O meu bote é frágil e redondo

Sofre os arremeços da borrasca

enquanto permaneceres altivo,

minha escultura de bronze

no alto da falésia.

 

Não ouves o meu lamento fundo e granítico,

o apelo agudo de uma ave

que se procura sozinha

e erra o sentido do voo?

 

Sabe-me a lágrimas este mar

onde me procuro

no limiar vazio do cansaço.

Ficarei só?

 

Este último poema evoca uma atmosfera de esperança. A espera pelo “azul” e o refúgio debaixo dos álamos sugerem uma busca por serenidade. A imagem do potro sem rédeas e o adormecer calmo no colo criam uma cena de confiança. A referência à “madrugada mais longa” adiciona um toque melancólico, contrastando com o final que menciona o “rumor da louca folhagem”.

 

 

Espero azul

o meu pedaço de noite,

o meu refúgio

debaixo dos álamos

do teu silêncio.

Encontro-te como um potro sem rédeas,

a galope

no meu sonho inacabado.

Adormece calmo no meu colo.

Há madrugadas mais longas,

rumor da louca folhagem.

 

 

Lília Tavares, nascida em Sines, traz dentro de si o marulhar das águas da costa alentejana. Começou a escrever textos poéticos aos treze anos enquanto estudante, inserida num contexto académico em que fervilhavam ideais e de onde saíram vários intelectuais do Baixo Alentejo, como António Guerreiro e José António Falcão. Influenciada por este último, começou a divulgar a sua poesia no então Jornal de Setúbal e a colaborar no Jornal dos Poetas & Trovadores. Foi na livraria Tanto Mar, propriedade do poeta Al Berto, que comprou os primeiros livros de poesia. Em 1979 editou em Santiago do Cacém, Fusão Crepuscular e outros poemas. Volta a publicar a solo em 2013: Parto com os Ventos (Kreamus), seguido de Evocação das Águas (Seda Publ., 2015), Sem Luar |haicais| (Temas Originais, 2015), Nomes Da Noite (Col. A Água e a Sede, #2, Modocromia, 2019), Bailarinas de Corda (Poética Ed, 2019), A Timidez Das Árvores (Col. Mãos de Semear I; Ed. ModoCromia, (Nov. 2020; 2ª ed, Jan. 2021), Casa De Conchas, com prefácio de José António Falcão; (Col. Mãos de Semear II;
Ed. ModoCromia, 2022). Participa em colectâneas de Poesia em Portugal, Espanha (Galiza e Extremadura), Suíça e Roménia, algumas de âmbito solidário. Em Abril de 2010 cria no Facebook, a Página Quem lê Sophia de Mello Breyner Andresen, de divulgação diária de Poesia, da qual é co-autora. Mestrada em Psicologia Clínica no ISPA, em 1988 alcançou o 1º e o 2º prémios de Poesia da AEIspa. Em 2021 organizou e selecionou textos inéditos de 123 autores em ÁGUA SILÊNCIO
SEDE
– Antologia em Homenagem Poética a Maria Judite de Carvalho no seu Centenário (Poética Edições, set. 2021). Em 2022 integrou, a convite, com José Proença Carvalho, o júri do Concurso Nacional TALENTOS CATIVOS II – 2021/2022 –
POESIA, promovido pela Dar a Mão – Associação para Ajuda à População Reclusa.

 

 

Texto
de Solange Firmino – Rio de Janeiro (RJ). É Professora de Português e Literatura. Venceu dois grandes prêmios de literatura, sendo o último em 2021, com o 2º lugar no Prêmio da Biblioteca Pública do Paraná, na categoria Literatura Infantil. Possui 7 livros de poesia publicados.

Respostas de 4

  1. Lilia Tavares faz parte de um grupo de poetas portugueses que enfatizam a conexão entre o sujeito lírico e a natureza de uma forma suave, mas paradoxalmente intensa. Há na sua poética uma nostalgia romântica, um paraíso perdido que todos sentimos e que tão bem ficou expressa naquele verso de Ruy Belo em "Vat 69": "Foi antes ou depois da morte Herberto Hélder?". Há um sincretismo entre o sagrado (o que fica, o que é permanente) representado pela Natureza e o profano (o que é temporário, irregular), neste caso a consciência humana na poesia de Lília Tavares. Quem conhece a Costa Vicentina, de onde a poeta é natural, entenderá melhor esta cumplicidade entre o mar e a terra. Creio que LT foi amiga de outro grande poeta português, Al Berto, autor também natural de Sines (segundo creio).

    A análise da Solange Firmino é de uma grande qualidade e rigor. Aprofessora e poeta Solange Firmino tem feito muito pela divulgação da poesia portuguesa no Brasil, num ato de grande amor e generosidade. Acho já existem muitos autores de poesia neste pedaço de terra que querem agradecer-lhe a sua atenção e dedicação. Eu, confesso, sou um deles.

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