6 poemas de Ramon Carlos


O capcioso eu derrotado

Foi Churchill quem disse:
“Agora que fizeram o que queriam
Vocês têm uma tarefa mais difícil
Gostar do que fizeram”
Ao som dos ruídos gástricos da cidade
O poder nunca foi tão metafísico
Partindo de um ponto ignóbil e viril
O desvio insular coberto por um lençol com dois furos
Homens e mulheres como adesivos num campo de golfe
Foi por isso que Prometeu prometeu não prometer mais nada
Sempre ouço dela: “Não existe doença, existe doentes”
Há muito pouco para mastigar ultimamente
Tudo parece trivial e sem gosto
Comboio marginal
Animais gargalhando, pois voltaram no tempo
E abortaram suas mães
E as tartarugas vivem muito
E as corujas também
Enquanto um besouro castrado na gaiola
Queima num berço vicioso
Colando fumaça no quadro branco
Escritor tarde demais
Escritor cedo demais
Desaprendendo
A caçar na escuridão
Um feixe de luz ilusório
Que me cega
No primeiro feixe de luz
Na escuridão
Era 22:00 quando faltou luz no bairro
E o primeiro grito que ouvi foi esse:
“Filha da puta! E agora como saberei a hora de parar de limpar o rabo?”
O maldito cano sanfonado
Os intrusos, a goteira, as rachaduras da parede, o barulho da caixa d’água
Uma aranha sem pernas tecendo sua teia para afastar-se de mim


Bengala

Preciso tirar o pó
Do escorpião na poeira
Reflexo branco
Caindo aqui dentro
Da janela do vizinho
Tento fechar a cortina constantemente
Mas continua caindo aqui
Iluminando uma linha reta
De praticamente nove centímetros
Até o pé da porta
Ele cruza Gal de Galileu
UL de PULP e a mão no gatilho
A borboleta azul do Novíssimo Testamento
Então percebo parte do recibo do aluguel
Que tanto precisei mês passado
Absorvido sob Minal de Germinal
Busco-o pelo carnaval da janela
Fecho a cortina novamente
Lembro daquela rainha verde
Que torcia os velcros sobre a cabeça
Rasgo o recibo em pequenos pedaços
Atiro-os em direção ao ventilador
Quando volto do banheiro
Os nove centímetros como uma muralha lunática
Atingem meus dedos dos pés
Antes de sentar, observo
Tação de Alimentação
Sento, e aquele sabre incandescente
Serra-me ao meio
Ao mesmo tempo em que me taxa de impotente
Brilhando meu maço de cigarros sobre o estribo
Uma mulher de cabelos cacheados
De bom porte, chega ao quarto vizinho
Eles conversam sobre a morte
De um estrangeiro no bueiro
Depois ela pede para estender as roupas no varal
Da janela
Eu ouço pingos nas telhas
Mas é uma mulher de fibra
Enquanto ela faz seus movimentos
Aquele reflexo que parecia tão contundente
Torna-se um pôr do Sol entre as montanhas
Uma víbora em um balde de ácido
Lanço-lhe um beijo, mas ela não vê
Eles conversam mais um pouco
Sobre o fim do amianto e as cruzadas perdidas
Ela vai embora, enquanto ele ouve uma música
Que também cai aqui dentro
Continuo serrado ao meio
Róis de Faróis, Êniev de Turguêniev
Acendo a luz do meu quarto
Baixando a guarda
Mas quando leio que,
Os Tigres de bengala
Podem acasalar até cinqüenta vezes em um dia
Desligo a luz
E vou beber na cozinha


Nas vibrações das mazelas

Nas vibrações das mazelas
Ruídos místicos das docas
Congestionaram a viela
E os ecos foram de carona
Para rua sem saída
O soturno gritou por silêncio
Enquanto fazia a barba deitado
Pediu-me opinião sobre seu cavanhaque
“É um formidável retentor de buceta”
Peguei na mão dela e atravessamos a rua
Caminhamos até um vendedor de garapa
“Dois com limão”
Aguardamos toda a engenharia
Seu vestido bronze com relevos pitorescos esvoaçava
Como as asas de um filhote recém chocado
Seu olhar que podia parecer periclitante
Mirava com louvor as sombras das árvores
Vitrines embaçadas pelo vapor íntimo
Paguei R$ 10,00, um copo maior que o outro
Ela sugeriu sentar para beber, concordei
Do outro lado via-se um museu fechado
Uma balança de farmácia, um vendedor de toalhas
O outro lado é uma miragem em construção
Falei em comboios atenuantes
Expliquei o retentor do soturno
Disse-me dos ladrilhos suportando pesos
E afundando em partes
Também dos rins equalizando os termos
As luzes aos poucos contestavam o pôr do sol
Ao passo em que as cigarras afinavam os acordes
Para um blues de rejeição
Petulante, afirmou que daria fim aos meus cravos do nariz
“Meu nariz não tem cravos, o que vê são medalhas”
Nos beijamos como uma batida de porta
Afirmativa, barulhenta e significativa
Jogamos os copos no lixeiro azul
Nos ladrilhos homens sem querer voltar pra casa
Em casa mulheres sem querer que os homens voltem
Arsênio injetado por um farmacêutico grego
Pelo meio da avenida até o mercado
Adiante
Um lugar nos espera
Com um gato que parece Carlitos
Derrubando prendedores de varal
Para ficar acomodado
Com uma melancia pela metade
Com os sons de uma cidade que previu o dia
Todo esplendor de uma lâmpada queimada
Sob estrelas vermelhas
O soturno barbear da catarse
Retentores em tanques de guerra
As mazelas, os deleites, os ecos e ruídos
Ainda dormiremos juntos
E acordaremos nus, com a janela semiaberta
Ouvindo o sempre pontual vendedor de ovos caipiras


Hiato  

um charme
em quarto de vidro
espuma verde
que circunda os jeans
do xará dos diabos, no joelho
incapaz variedade de prever
o xamã no ponto clínico
sirene na colmeia dos abutres
louvo-te hiato
louvo pela capacidade que me tens
de purificar minha demência
de persuadir minha clemência
de extorquir meu saldo de observações
louvo pela simples castidade que propõe
impõe, em baldes de mármore
suave como o título lhe traduz
o silêncio que exterioriza meu sorriso em carne viva
sensato, sensato, sem tato
clamo a ti
a impureza
de um novo impacto
intacto


Rascunho

Desabotoando os ossos
Da esfinge galgada
Esse trem que não vai por onde veio
A estipe desmancha o caramelo do nevoeiro
Habita-me
Prosaico e imune
Como as raízes num chão de lama
Habita-me selva em doses
Semeia a eloqüência dos meus porres
Disparo galante
Entre o troco e a sobra
Entre o porco e a cobra
Abro a janela pra respirar
Alguém reclama do barulho
Corro para o banheiro
Seco o guarda chuva
Visto-me entrelinhas
Releio a carta
Recorto-a em curvas
Bem sabe ela
Que nunca responderei


Miríade

Quietos
Recebo uma baforada de cigarro na cara
E logo após, uma risada branca, iluminada
“Hahahaha, vi Oz!”
Não reajo
Não tiro os olhos da sombra
Na parede
Os botões secos dos lírios mortos
Criam essa face
Soprando um apito
“Vi Oz! Tenho um pedido!”
O vento balança o pote cheio de terra
Os lírios estão mortos mas dançam
O apito cai da boca
Volta pro nariz
A sombra jorra um líquido
O homem é banguela
E careca
Mesmo assim canta
Sem encostar a língua no céu da boca
“Tem o que?!” Pergunto
“Tenho um pedido Oz”
Quietos
As roupas estáticas no varal
Trégua
O apito na boca
“Que pedido?”
“Quero que mate uma barata”
No outro dia
Enquanto meus cabelos caíam
No chão do banheiro
E uma barata era velada
Dentro do lixo
Enrolada num papel higiênico
Eu lembrava daquela face
Apitando conforme o vento
E cantando sem tocar a língua no céu da boca:
“Os navios partiram deixando as âncoras
Somente quando quiserem atracar
Saberemos o peso delas”


Ilustrações: Simon Lachapelle




Ramon Carlos (Santa Catarina, 1986). Escreve no site: www.estrAbismo.net. Sua carreira literária resume-se a dois contos publicados em uma antologia, além de materiais diversos em revistas como: Inutensílio, LiteraLivre, Subversa, Philos, Escambau, Bacanal, Ruído Manifesto, Literatura & Fechadura e Jornal Plástico Bolha.

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