DA POESIA NO MUNDO — OU O TRÁGICO EQUÍVOCO DA BOA VONTADE: Léo Mittaraquis

“Homem, carne sem luz, criatura cega,

Realidade geográfica infeliz,

O Universo calado te renega

E tua própria boca te maldiz!”

Augusto dos Anjos, “Homo Infimus”.

Este ensaio, se é que logra a tanto, tenta responder a um equívoco que teima em se impor desde há muito: a percepção do poema, após composto, elaborado e publicado, como um instrumento de transformação sociocultural e política de alcance verdadeiramente balístico, no que toca ao ilusório poder que lhe é outorgado, ou seja, de salvar o mundo, de tornar o mundo melhor.

Ora, a intenção dos que assim pensam, os quais, muito provavelmente, julgam-se poetas, eles e elas, pode até ser a de, com seus escritos, impedir, em larga escala, algo de falhar; resguardar algo dum dado perigo; contribuir para que projetos humanitários atendam a nobres propósitos. Isso está no seu direito. Um direito baseado na estultícia, porém, ainda um direito. Não por acaso, e de forma acurada, nos alertou André Gide: “Bons sentimentos produzem má literatura”.

O “poeta” [valho-me do termo por cortesia, como diria Nietzsche] que produz poemas com o fito de propagar seu amor pelo mundo, sua angústia diante das inexoráveis vicissitudes inerentes ao ‘ser mundo’ e ‘ser no mundo’ exerce, na verdade, um narcisismo estúpido [e há narcisismo que não o seja?], uma autocomplacência, imprópria a quem se apresenta como escritor, como literato. Neste caminho é construída a falsa imagem do próprio “eu”. E deixa-se dominar por esta imagem, este ‘eidolon’. Nada mais errado! Pois a produção literária é, ao lado do exercício estético, a afirmação da liberdade intelectual individual. Tal condição, como observa George Orwell, significa “dizer o que se viu, ouviu e sentiu, sem obrigação de fabricar fatos e sentimentos imaginários”. E para alcançar este estado de espírito e de pragmática, necessário se faz aceitar que ele, ao invés dado, requer luta [leia-se trabalho, estudo, leitura permanente do que é muito bom] para conquistá-lo.

“Salvação do mundo”, “melhoria do mundo” mediante atividade poética, vale dizer, produção de poemas, são crendices dos que vivem à sombra do mágico, do quimérico, dos bons sentimentos mal direcionados.

Poema é a representação conteudística e formal do mundo em alguns dos seus aspectos, em algumas de suas referências, e que emprega linguagem, ritmo e harmonia. Sempre o foi, sempre o será. As experiências vanguardistas vieram e se foram. O movimento Poesia Concreta comprova isto.

Mesmo com o estilo pessoal do poeta, a originalidade absoluta não existe. Aristóteles já cogitava fenômeno da produção poética como uma imitação. Entenda-se que o filósofo distinguia as coisas: somos naturalmente miméticos, não naturalmente falsificadores, não temos de, para produzir ficção, adotarmos postura fraudulenta e ardilosa. Basta-nos, como entes presentes no mundo, a consciência do que é real em oposição ao que é irreal. Do real colhemos material para criação. O irreal ainda é um simulacro do concreto existente. Recordemos Santo Agostinho em “Confissões”: ao comentar sobre um sonho que tivera, observa que apareciam formas estranhas, mas que ainda eram formas.

Mesmo os versos irregulares, heterométricos, aos quais, por exemplo, eu recorro para composição dos meus execráveis poemas, exigem uma disposição formal que leve em conta os três fatores citados nas primeiras linhas deste parágrafo, sempre, ainda que construídos mentalmente, alicerçados no ambiente material.

Para mim o posto acima é mais do que suficiente. O que não significa que se esgota assim. Mas é objetivo e funcional. O ponto que eu discordaria diz respeito à condição exigida pelo estagirita quanto ao poema ter de obrigatoriamente deter-se no mundo físico, na realidade operatória, excluindo experiências estéticas levadas à efeito via abstrações. A abstração, ao meu juízo, também é ferramenta. Entretanto esta não deve representar o mero alheamento mental quanto ao entorno.

Mas não é sobre a Poética de Aristóteles que desejo tratar. A obra já foi analisada, valorizada, rechaçada, ressuscitada à exaustão por mentes estudiosas muito mais preparadas intelectualmente do que eu.

O foco é a mitificada [e até mistificada] percepção do objeto poema como que dotado de alto poder de ingerência no curso da história da humanidade.

Não, a poesia, o poema, não  tornam o mundo melhor. Não em sua totalidade geofísica [a área total da superfície terrestre é de cerca de 510 milhões de km²] e nem em sua totalidade populacional [8,2 bilhões de habitantes] o que implica nas respectivas manifestações comportamentais.

A vocês, néscios insurrectos ante o inexorável governo da História, vale dizer, fascinante linha no tempo e no espaço que fundamenta nossa existência, nosso lugar e identidade no mundo, pouco resta a fazer. E que bom ser assim.

A poesia e o poema são composições culturais, portanto, humanas e materiais sem poder algum para interferir na dinâmica mesma da existência do mundo [não obstante fazer parte dele] em suas distintas [por vezes integradas, convergentes; por vezes divergentes, conflitantes] atuações inerentes à marcha em direção a um futuro totalmente desconhecido.

O “ser mundo”, em todas as suas acepções materiais, deve ser percebido e interpretado pela ótica dialética. Disso, para irmos lá no comecinho, já tinha esclarecida consciência Heráclito: “É necessário saber que a guerra é comum e a justiça, discórdia, é que todas as coisas vêm a segundo discórdia e necessidade” [Fragmento LXXX, p. 187, COSTA, Alexandre. Heráclito — Fragmentos Contextualizados].

Os problemas inerentes à natureza do mundo [a realidade geológica e biológica básica; a realidade social] não podem, em nenhuma hipótese, ser solucionados mediante manifestações poéticas. Não há produção literária que detenha o poder de agradar, redimir, curar, aperfeiçoar a todos e a todas, no mundo, de maneira absoluta, de forma geral e horizontal.

Sim, a produção literária, de boa para excelente qualidade, produz, enquanto exercício estético, bem-estar ao espírito, contudo, é um ato de liberdade individual e intransferível. Significa que, tal condição se dá sempre de forma restrita e localizada. Mesmo que dez milhões de leitores se identifiquem e, suponhamos, ponham em prática os “ensinamentos” propostos pela composição poética, estaríamos nos referindo a menos de zero vírgula dois por cento da população mundial. E ainda é muitíssimo acima do diluído índice de interação possível, a julgar pelo que a realidade operatória, na qual a História Universal se funda, sugere.

Crer e pregar que poemas salvam o mundo e o tornam melhor é o mesmo que prometer felicidade. Significa propor que o exercício de compor e de ler poesia é dotado do mais absoluto poder de proporcionar a perfeita satisfação emocional do ser humano. Percepção, no mínimo, irresponsável e insensível, se levamos em conta um sem-número de almas fragilizadas devido às mais terríveis e variadas causas.

Em tempo: a produção literária, seja prosa ou verso, quando alcança alto nível estético, proporciona imortalidade ao autor: sua obra sobreviverá por séculos e séculos. A Literatura Clássica é prova disso. E encantará leitores atentos e de denso capital cultural ao longo do tempo. Melhor diz Schopenhauer em “O Ofício do Escritor”: “Quando um poeta encarna sua sensação mais fugaz com palavras adequadas, ele vive nestas por milênios e volta a despertar em todo leitor sensível”.

Entretanto, mantenhamos ciência  de que autor, obra, leitor e intérprete são elementos do e no mundo. Sangue, músculos, celulose, tinta, cola, coordenação motora são objetos concretos, palpáveis. O indivíduo-autor, o indivíduo-leitor e o indivíduo-intérprete, quando findos, são irrecuperáveis. Outros virão. A obra pronta, realizada, permanecerá via exemplares graças a reprodutibilidade técnica. Atravessará gerações. Uns títulos mais, outros menos. A maior parte, porém, se dissolverá no meio ácido da publicação indistinta e excessiva. Voltando ao genial pessimista: “O que acontece na literatura não é diferente do que acontece na vida”.

Não, não é diferente. Mas, a recordar Edward O. Wilson, a literatura, no caso, aqui, a poesia, se pretender, em nome da salvação do mundo, se restringir ao discurso ideológico-panfletário, em obediência tão somente ao concreto e demonstrável, tornar-se-á outra coisa que não poesia.

Sem recorrer ao discurso político-ideológico raso e pérfido, a boa, a alta literatura, como campo legítimo para o exercício da ficção, oferece exemplos de métodos [lícitos e ilícitos] de se operar no mundo regido pela realidade operatória. Mas este campo será sempre restrito em relação a outros tantos, muito mais presentes e influentes dada sua natureza.

Nada impede que a poesia, mediante poema, se proponha a explicar, validar, rejeitar, denunciar, ressaltar, dados aspectos da realidade. Afinal, o fenômeno literário faz parte desta. E por isso mesmo é que o escritor consciente, que sabe moderar o idealismo presente em todos nós, em maior ou menor grau, não se deixará levar por uma lírica messiânica. Sabe que há o entorno observável, táctil, o qual influi, de diferentes maneiras, na nossa vida física e intelectual. Por mais surreal que pretenda sua poesia, se farão presentes os elementos reconhecíveis. Basta o fato de que se vale de palavras. Nem mesmo o mais radical e absurdo neologismo escapa à realidade operatória, já que é constituído por letras.

A realidade não tergiversa, não negocia, não perdoa. O escritor nela se encontra, junto com seu poema. Mesmo sem negar a realidade, [de nada adiantaria fazê-lo], o autor, se compõe seus versos baseado em teorias e objetivos integrados, os quais constituem um programa sociopolítico, finda por mascarar ideologicamente a realidade de que tem pleno ou algum conhecimento, em que pese a subjetividade. Isto é, envernizar o poema com uma camada brilhante de ideologia é tão somente confessar-se estética e mentalmente paupérrimo. O ato de liberdade inerente à produção literária morre aí.

Mais uma vez, bem explicadinho, estilo “abc”: afirmar que poema não salva e nem melhora o mundo, não significa alijá-lo da inquestionável condição de produtos na realidade. Muito pelo contrário: é parte da realidade, é possível ferramenta a ser utilizada para exercer algum tipo de relativa influência. O abalo sísmico pode até ser considerável, e muitas vezes o é. No entanto, jamais será sentido e compreendido por todo o orbe.

Que o poeta componha bons e honestos poemas. Já é muito num mundo onde a sensibilidade inteligente torna-se cada vez mais rara. Mesmo sem salvar e nem melhorar tudo, fará diferença em pequenas ilhas formadas por espíritos cultos, sensíveis, tendentes ao cultivo do Belo.

Há muita dor no mundo, pouco podemos fazer quanto a isso. A maioria de nós já experimentou algumas formas de dor corporal ou emocional. E há quem tenha vivenciado as duas ao mesmo tempo.

Há muita beleza no mundo, e desta faz parte a poesia bem-feita, igualmente bela. Todavia, a beleza é o maravilhoso equipamento [como todo equipamento, exige revisão técnica] de mergulho do qual devemos nos valer em resposta à constante imersão no ebuliente oceano de problemas, tristezas, decepções, dores, catástrofes, guerras… Temos de vivê-lo, e a poesia, decerto, nos ajuda, em termos, a suportá-lo. Sem embargo, não nos foi dado poder de evaporá-lo.

Aos ditos poetas, estes que alardeiam status de panaceia da poesia: o mundo até pode ser lugar da sua equivocada vontade, porém jamais será sua real representação.

Léo Mittaraquis é graduado em Filosofia, pós-graduado em Educação, autor do livro de poemas Sob a Régua do Expediente. Publicou, ao longo de dois anos, textos críticos no portal Só Sergipe. É carioca e mora em Aracaju.

Ilustração: O Poeta/Pablo Picasso

Respostas de 3

  1. Muito bom, Schopenhauer já dissecou com bisturi afiado essas questões que o autor, pela importância do tema, brilhantemente atualiza.

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